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Ostra feliz não faz pérola. Relembre o mundo maravilhoso de Rubem Alves

Esta máxima, que intitula o livro homônimo (ed. Planeta), saiu do maravilhoso mundo interno de Rubem Alves. O velho sábio se foi em julho do ano passado, mas sua sapiência permanece, plena de encantamento e lucidez.

Rubem Alves – Reprodução/ Facebook
“Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos –, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem. 
Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão…”.
Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que,  para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de sua aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. 
Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. 
O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fi zera uma pérola. Ele a tomou e deu-a de presente para a sua esposa. 
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música , Nietzsche observou que gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente surdo, no fi m da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa…”. 
“A pergunta não deveria ser: ‘Você acredita em Deus?’, mas: ‘Você se comove com a beleza?’. Deus nunca foi visto por ninguém. Ele se mostra na experiência da beleza”.
Homem de múltiplas camadas, uma mais sensível que a outra, Rubem Alves (1933-2014) se espraiou por muitos talentos. Natural de Boa Esperança, no sul de Minas Gerais, e radicado em Campinas, no interior paulista, foi pedagogo, psicanalista, teólogo, escritor, poeta, cronista, contador de estórias, ensaísta, acadêmico e colunista de BONS FLUIDOS de 2004 a 2009. Mas, segundo ele, a melhor definição de si mesmo partiu de um garotinho: “Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos…”. Afinal, como dizia o mestre: “As pessoas são aquilo que amam”. Viveu sabendo que “o tempo foge, tudo é espuma” e, por isso, colheu todos os saborosos frutos que “crescem na parede do abismo”.

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