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Só vê limites quem quer

Maior atleta paralímpico masculino do mundo em número de medalhas, o paulista Daniel Dias é a prova de que as limitações e os preconceitos são distorções da mente. Por isso, nunca se privou de sonhar e de acreditar em si mesmo

Daniel Dias – Divulgação

Na madrugada de 24 de maio de 1988, Rosana e Paulo Dias choraram. Estavam na maternidade, em Campinas, em São Paulo, prestes a dar à luz o filho Daniel. A surpresa que, naquela época, só o parto pôde revelar, era que o bebezinho tinha malformação congênita – faltavam-lhe os membros superiores e uma das pernas. “Hoje sou pai e sei que ninguém espera ter um filho com deficiência. É um baque na família”, diz Daniel, casado com Raquel e pai de dois filhos: Asaph e Daniel. Mas a angústia de seus pais foi aplacada no instante em que puderam acariciá-lo na incubadora. “Passamos a mão em sua pele e ele sorriu. Jamais esqueceremos”, conta Rosana.

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O sorriso aberto e cristalino é uma marca que Daniel leva por onde passa. E não foram poucos os lugares que ele visitou sendo o maior atleta paralímpico masculino do mundo em número de medalhas – 24 no total. O paulista, que mora e treina em Bragança Paulista, no interior do estado, já disputou, além de diversos campeonatos mundiais, três Paralimpíadas: Pequim, Londres e Rio de Janeiro. Nesta última, teve a honra de faturar nove medalhas (quatro ouros, três pratas e dois bronzes) perante o olhar orgulhoso da família na arquibancada.
Por sua notável performance, recebeu três vezes o prêmio Laureus (comparável ao Oscar), se consagrando como um mito do esporte paralímpico internacional.

A garra de campeão foi construída ano após ano. Não lhe faltaram batalhas, tampouco força de vontade. Aos 6 meses de vida, Daniel começou a frequentar a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo. Ali, passou 15 anos entre consultas, sessões de fisioterapia e sucessivas adaptações a próteses. Estava entre “iguais”, num ambiente seguro e respeitoso. Diferente do meio escolar, onde, no início, foi chamado de “Saci” e de aleijado. “Comecei a perceber que eu tinha uma deficiência quando fui para a escola, aos 5 anos. Não havia instituições especiais, o que foi bom, porque pude aprender sobre as diferenças e o preconceito”, conta. A sorte de Daniel é que seus pais sempre o trataram como qualquer criança, com total liberdade para fazer o que quisesse, inclusive andar de bicicleta, façanha que surpreendeu a todos. O diálogo irrestrito também foi fundamental. “Meus pais sempre conversaram muito comigo e tiveram sabedoria para lidar com essa situação. Entendi que o preconceito existia, existe e vai existir”, sintetiza.

O gosto pelo esporte permeou sua meninice ativa e destemida, o que lhe rendeu uma série de próteses quebradas. Nas aulas de educação física, Daniel fazia tudo o que o professor pedia: basquete, vôlei, futebol etc. Na adolescência, as coisas ficaram mais sérias. Mais precisamente em 2004, aos 16 anos, quando uma luz se acendeu na tela da televisão: era Clodoaldo Silva, o “tubarão das piscinas”, ícone do esporte paralímpico brasileiro, brilhando nos Jogos Paralímpicos de Atenas. Era isso. Sentiu. Seria um nadador profissional.

Ter a natação como meio de vida seria a forma perfeita de mostrar para si mesmo e para as pessoas que o preconceito não tem razão de ser, não passa de uma construção distorcida da mente. “Não é uma deficiência física que nos define. O que nos define está dentro de cada um de nós”, defende. Mas, para chegar a essa formulação, o atleta teve que, primeiro, se desvencilhar de crenças limitantes. “Precisei tirar o preconceito de dentro de mim, porque, no começo, me sentia inferior aos meus colegas.”

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Tudo mudou depois de um concurso escolar de pintura. Adivinhe quem criou a obra mais bonita? Sim, o garoto “diferente”. Daniel considera esse momento sua primeira medalha.
Um marco. A oportunidade que espantou a sombra da dúvida. “Meus colegas viram que eu era capaz, e eu também. Naquele momento, fiz uma escolha: ser feliz e buscar meus sonhos.” No ensino fundamental, nova prova de superação: Daniel aprendeu a tocar bateria. Até hoje, alguém o ajuda a prender as baquetas nos braços e, depois, é só mandar brasa. “Tudo isso me fez crescer e ser quem sou hoje.”

A entrada na Associação Desportiva para Deficientes (ADD), entidade fundada em 1996 que promove várias categorias de esporte adaptado, foi outro divisor de águas. Águas que não só o acolheram aos 16 anos como escancararam seu dom, segundo ele, um presente de Deus. “Lá me indicaram a natação. Acharam que eu tinha perfil, mesmo nunca tendo nadado. De cara, me apaixonei pelo esporte e aprendi os quatro estilos em oito aulas”, diz.

O que veio depois está bem sintetizado em seu quadro de medalhas. Resultados prodigiosos, ancorados em muita dedicação. Felizmente, o sucesso não se sobrepôs ao foco. Daniel
treina diariamente em dois períodos e ainda faz pilates e fisioterapia. Não mede esforços para lapidar o que Deus colocou na “raia” da sua jornada. Porém, em termos de aprendizado e desenvolvimento pessoal, essa bênção extrapola as medalhas. “Quando entrei no esporte paralímpico, era uma pessoa feliz e resolvida. Mas, mesmo assim, esse meio mudou completamente a maneira como eu olhava a vida”, confessa, e acrescenta: “Ver o sorriso estampado em cada atleta, independentemente de ser o primeiro ou o último, me impactou bastante. Compreendi que o esporte vai muito além das conquistas. Realmente você pode mudar uma vida através dele”.

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Tal percepção culminou numa importante iniciativa. O esportista virou padrinho do projeto Nadando com Daniel Dias, desenvolvido em parceria com a ADD. Essa ação oferece treinamento a 20 atletas com deficiência para que possam participar de competições nacionais e internacionais. “Queremos mostrar a crianças e jovens deficientes – e a seus pais – que eles são capazes de realizar sonhos e de atingir objetivos. De repente, nem todos querem ser campeões no esporte. Mas podem ser campeões na vida.” Ter a oportunidade de treinar ao lado de um campeão histórico é mais do que um incentivo, é inspiração. “Muitos jovens já chegam tendo um espelho lá na frente, que é o Daniel Dias. E ele incentiva muito esses meninos”, revela o técnico de natação Marcos Rojo Prado, que trabalha com o nadador desde 2006, considerado por todos um paizão exigente e parceiro.

O atleta Andrey Garbe, 20 anos, de Bragança Paulista, é um dos “peixes” acolhidos pelo projeto. Com 1 ano foi diagnosticado com meningite e trombose, quadro que comprometeu a perna direita. Aos 5 anos, colocou sua primeira prótese: um pedaço de madeira. Aos 9, deu as primeiras braçadas. Mais tarde, passou a treinar pertinho de sua referência. Em 2013, Andrey estreou na delegação brasileira de natação paralímpica e, em 2016, conquistou uma medalha de bronze nas Paralimpíadas do Rio. “Não tem segredo. Temos que acreditar que somos capazes e ir para cima”, resume.

Apesar dos avanços alcançados nos últimos anos nos campos da cidadania e da inclusão, muitas pessoas com defociência ainda ficam trancadas em casa por vergonha de sua condição. Por não tolerar essa realidade, Daniel repete Brasil afora: “O esporte pode ajudar essas pessoas e famílias. Todos são capazes. Fico feliz por ser exemplo até para aqueles
que não têm nenhuma deficiência”, afirma. O próximo objetivo desse campeão fica do outro lado do globo. Os Jogos Paralímpicos de Tóquio, em 2020, prometem mais vitórias. Mas a maior delas já foi conquistada tempos atrás. A certa altura da infância, quando Daniel escolheu ser feliz.

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Manual do sonhador

Desde pequeno, Daniel Dias intuiu que, se não ousasse, seria definido por sua condição física. Essa compreensão o levou longe, segundo o psicólogo Marcelo Rosenfeld

1) Daniel conseguiu transformar suas limitações físicas em ferramentas de trabalho. Aquilo que o limita se tornou o que, literalmente, o move para o sucesso.

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2) Esse pacto exigiu e exige muita disciplina, paciência e determinação.

3) No entanto, mais do que os músculos, o que realmente parece impulsioná-lo é um conjunto de características de outra natureza. Daniel é alegre, superastral e renova constantemente suas metas e sonhos.

Daniel Dias

Idade: 29 anos
Função: atleta paralímpico
Como se define: uma pessoa feliz
Mantra: “Sempre agradeço a Deus por tudo que acontece em minha vida. A Ele toda honra e glória”.
Como gostaria de ser lembrado: uma pessoa feliz que, através do esporte, tentou mostrar que somos todos iguais.
Eu tive um sonho… “Ser um nadador profissional e contribuir para a ampliação do acesso ao esporte adaptado”.