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Pedalar é preciso

O empresário Juan Muzzi criou uma bicicleta ecológica feita de garrafas PET e outros plásticos reciclados. O futuro da indústria, ele sonha, será “verde” como as suas “magrelas”

O empresário Juan Muzzi – Divulgação
“Por que bicicletas são tão caras? Todo mundo deveria poder ter uma”, protestou o menino uruguaio obrigado a vender sua bike para ajudar a família. O garoto da
pequena cidade de La Paz, no Uruguai, que trabalhava arando a terra, acordava cedinho para vencer a pé os quilômetros empoeirados que o levavam até a lida na fazenda do tio. Mas, de tanto insistir, um dia o parente o presenteou com a “magrela” italiana antiga que vivia pendurada no galpão. Passou a ir ao trabalho pedalando, até se desprender dela. Mal sabia que, no ano de 1998, iniciaria a empreitada de fundar sua própria fábrica de bicicletas.
Juan Muzzi, engenheiro, artista plástico apaixonado por reciclagem e fundador da Muzzicycles, radicado no Brasil há 47 anos, poderia ter simplesmente ampliado a frota de pedais de aço que rodam por aí, ainda caros, na visão dele. Mas não. Isso se contraporia à revolta do menino de La Paz. “Bicicleta deveria ser um bem social”, até hoje
sustenta. Acontece que o ferrenho defensor de meios de produção não poluentes não se satisfaria se produzisse veículos apenas acessíveis. Eles também tinham de ser sustentáveis. “Ao usar um material ecológico na fabricação, eliminaria um problema que afeta a natureza e, de quebra, produziria um meio de transporte barato”, expõe seu raciocínio.
Foi aí que a faceta de inventor tomou a dianteira. Na infância, Juan era aquele tipo de criança que confeccionava os próprios brinquedos, montava antenas, fuçava a engrenagem dos objetos. Na adolescência, chegou a montar o próprio carro. Mais tarde, tentou emplacar vários inventos, até finalmente estourar com as molas coloridas, brinquedo que se tornou uma febre nos anos 1990. Mas nada lhe trouxe o gosto da realização como seus quadros de bicicleta produzidos inteiramente com plástico reciclado, incluindo garrafas PET, embalagens de produtos de higiene, peças de carros e de eletrodomésticos e outros plásticos, como polipropileno, nylon e ABS.
Após anos de pesquisas e testes, o produto, único no mundo, entrou no mercado em 2012 – com o selo do Inmetro –, para a alegria dos ciclistas urbanos e daqueles que se preocupam com as questões ambientais. A alquimia por trás das bikes “verdes”, exportadas para mais de 15 países e patenteadas em 140 nações, cumpre as seguintes etapas. Após ser triturada e tratada para ganhar resistência e se proteger contra a ação do sol, a matéria-prima é injetada em um molde que resulta em peça única, destinada a qualquer tipo de aro de bicicleta, com garantia vitalícia. Cada quadro usa cerca de 6 quilos do mix plástico (incluindo 200 garrafas PET).
Até hoje aproximadamente 30 mil quilos de plástico já foram reaproveitados pela marca, cujo processo de fabricação é amigável, entre outros motivos, por prescindir
do alumínio, que consome elevadas doses de energia para ser obtido, além de dispensar tinta, solda e derivados do petróleo. “Trabalhamos com custo zero em água, ferro, bauxita e alumínio”, comemora Muzzi. Uma economia de 90% de energia em comparação com outros quadros produzidos atualmente.
E isso fica cada vez maior. Desde 2012, a empresa já produziu 10 mil quadros de bicicleta. Cada peça contém 2 quilos de material reciclado (proveniente de empresas e recicladoras). Com isso, deixa de despejar na natureza milhares de quilos de gás carbônico em material incinerado. E o cliente ainda pode “engordar” essa engrenagem. Para cada bike são aceitos 100 quilos de material plástico que se convertem num desconto de R$ 100 no valor da compra. É possível adquirir, exclusivamente pela
loja virtual, apenas o quadro – a partir de R$ 480 – ou ficar com um dos cinco modelos de bicicletas completas.
Essa bem-sucedida história de empreendedorismo fica ainda mais admirável se trouxermos à tona os bastidores. A saga do empresário-inventor teve sete protótipos fracassados, venda de bens para angariar recursos próprios, uma pausa forçada por falta de verba e um empréstimo milionário em dólar. Um ano depois, a moeda
norte-americana havia triplicado em relação ao real. Resultado: a dívida alcançou a estratosfera. Para quitá-la, o uruguaio teve que entregar ao banco o imóvel que sediava sua linha de montagem e ateliê, no bairro do Limão, na zona norte de São Paulo, e que levou dez anos para ser levantado pelo próprio empresário, junto com um pedreiro e um soldador.
Mesmo em face de perdas desse porte, Muzzi jamais cogitou desistir. “A utopia faz você caminhar, mas, para realizar o sonho, só a persistência”, admite. Foi conhecendo os erros e aprendendo com eles que o uruguaio descobriu a liberdade para seguir criando. Prazer, segundo ele, comparado à própria locomoção sobre
duas rodas, livre de pedágio, imposto, combustível. “Senti o gosto de ser livre muito cedo. Por isso, nunca aluguei a minha inteligência para o sistema, o que me permitiu sonhar”, filosofa. A tenacidade está no sangue. Com o avô materno, imigrante italiano e escultor, Muzzi assimilou a persistência de trabalhar no granito; com o pai, a garra nos negócios. Hoje, as dívidas da empresa estão quitadas e a marca começa a ganhar mercado.
Quando constata que suas bicicletas, além de beneficiarem o meio ambiente, podem transformar o cotidiano de uma comunidade, o criador renova o gás para seguir adiante. Em Ccoñamuro, vilarejo a 70 quilômetros de Cusco, no Peru, por exemplo, crianças trocaram embalagens de isotônico por bicicletas verdes e puderam
ir à escola pedalando em vez de caminhar por três horas diárias para poderem estudar – um script velho conhecido do inventor. Outro exemplo vem daqui mesmo. Desde 2012, a prefeitura de Indaiatuba, a capital paulista da bicicleta, oferece gratuitamente unidades em pontos estratégicos da cidade para uso da população por quatro horas contínuas, porém renováveis. Quem gastava 50 minutos de ônibus para chegar ao trabalho passou a precisar de 20 minutos sobre os pedais, sem falar na economia da
passagem e na atividade física diária.
O uruguaio não irá sossegar enquanto seu negócio não adquirir escala industrial e puder baixar ainda mais os custos (a Muzzicycles tem capacidade máxima para produzir 132 mil quadros de bicicleta, o que representaria um total de 264 quilos de plástico reciclado). Além disso, um novo modelo está em fase de testes. Se tudo der certo, poderemos em pouco tempo comprar bicicletas feitas com material de fonte renovável, biomassa, transformado em plástico. A Braskem, maior produtora de resinas termoplásticas das Américas, que já realiza a conversão da cana de açúcar em polímeros, é a responsável pelo projeto em parceria com Juan.
Ainda mais arrojado é o plano de aderir ao modelo de economia circular. Isso significa adicionar sementes no plástico ecológico para que, quando chegar a hora do descarte, ele possa se transformar em árvore, a exemplo dos papéis sementes, feitos para serem plantados após sua utilização. Ideia absolutamente viável, garante o empreendedor. Só uma questão de aprender o que a natureza nos ensina gratuitamente. “Acredito que daqui pra frente muitas indústrias irão utilizar material reciclável em suas linhas de produção. A Muzzicycles é só o começo dessa história”, prevê o entusiasta das inovações que cooperam com o futuro.
JUAN MUZZI
Idade: 68 anos
Função: dono da Muzzicycles
Como se define: um homem persistente
Mantra: somos feitos da matéria-prima dos nossos sonhos. O mais importante é realizá-los. “O resto é silêncio.”
Como gostaria de ser lembrado: alguém que nunca alugou sua inteligência para o sistema
Eu tive um sonho…“fabricar bicicletas ecológicas a preços acessíveis.”
Manual do sonhador
Por trás da bicicleta ecológica criada por Juan Muzzi, há uma grande “sacada” e muito mais, como observa o psicólogo Marcelo Rosenfeld
1: Juan é inquieto, fuçador e inventivo. Melhor ainda, é tudo isso com as mãos e com a cabeça.
2: É um belo exemplo de resiliência, esse termo que já entrou e saiu de moda. Superou obstáculos sem esmorecer, aprendeu com as adversidades, é persistente e
emprega sua flexibilidade para se adaptar a novos desafios.
3: Ao lado disso, Juan é sedutor e ótimo criador de narrativas. Talentos fundamentais para vender seus produtos, conquistar admiradores e, especialmente, atrair investidores e parceiros para seus projetos.

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