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Há uma solidão que engrandece o mundo

Ela está aqui, dentro de você. Mas, em vez de negá-la ou empurrá-la para longe, aproxime-se, toque-a com carinho. Não é preciso ter medo de ficar sozinho

Há uma solidão que engrandece o mundo – iStock
A certa altura do longínquo século XIX, o francês Charles Baudelaire (1821-1867) vaticinou: “Quem não sabe povoar sua solidão também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão”. O artista conhecia bem a angústia de se sentir só. Mas, como poeta que foi, preencheu esse imenso vazio com palavras que brotavam da intimidade com a alma e amaciavam os momentos de introspecção.
Se visitasse esse começo de século XXI, Baudelaire ficaria espantado com tanta gente conectada a seu smartphone afugentando durante 24 horas do dia a mais remota possibilidade de ficar só. A sociedade acelerada e interativa em que vivemos desaprova o desejo de reclusão como se ele fosse um obstáculo ao sucesso e à realização.
Na cabeça de muitos, as pessoas que passam a maior parte do tempo acompanhadas seriam as mais encaixadas socialmente, saudáveis. Quem vive só seria infeliz e
teria uma vida menos interessante ou colorida do que os que mostram o riso, compartilham, são comentados. Solidão, não. Dá medo.
Ficar consigo mesmo, de fato, tem aspectos duros. É penoso olhar para dentro com sinceridade – exame que não deixa escapar culpas, faltas, feridas, frustrações, limitações. Todo um espectro frágil e imperfeito do espelho humano. Ao passo que os momentos compartilhados com os outros nos distraem de nós mesmos.
Há ainda o grande medo do abandono. De acordo com a psicanalista Maria Homem, de São Paulo, rejeitamos a solidão porque, acima de tudo, tememos entrar
em contato com a sensação de desamparo que nos acompanha desde o nosso nascimento. “Nesses momentos, é como se reencontrássemos o recém-nascido que chega desprotegido a este vasto e perigoso mundo”, ela compara.
Soma-se a isso o fato de os solitários do mundo ocidental viverem numa cultura que entende cada indivíduo separado do todo, do Supremo, da fonte da vida, diferente do que creem os orientais. A noção de separatividade dificulta a experiência da unidade, ou, para quem preferir, a conexão com o divino, e nos convence mais ainda de que precisamos pertencer “externamente” a alguma turma. “Essa crença faz pensar que estamos sozinhos se não tivermos a companhia de alguém”, observa Paulo Sérgio Oliveirah, terapeuta transpessoal de São Paulo. O pavor só aumenta quando vislumbramos o porvir – a perspectiva do envelhecimento solitário é um dos grandes fantasmas humanos. Quem há de olhar por nós quando nossas forças nos faltarem?
Tantas crenças e conceitos ocupam espaço demais. Atravancam a passagem para a estrada maior. De que, sim, aportamos nessa vida sós e dela partiremos igualmente avulsos, mas isso não precisa representar desencontro e constrangimento.
Se a solidão é uma parte tão nossa quanto a própria sombra colada aos nossos passos, nada melhor do que se “achegar” a ela com carinho e desvendar o imenso território que ela reserva. Como propõe a escritora gaúcha Martha Medeiros na crônica Povoar a Solidão, “permita que sua solidão seja bem aproveitada, que ela não seja inútil. Não a cultive como uma doença, e sim como uma circunstância, que às vezes dói, mas tem poesia”.
Convidando a solidão para um chá Quem abre a porta de casa para esse sentimento e o recebe com respeito pode ser graciosamente retribuído. É somente quando as conversas cessam que conseguimos depurar a existência e nos situar dentro dela, ou seja, sentir e acolher nossas necessidades mais profundas. Apenas sozinhos
podemos superar certas provas, encarar algumas verdades, para então transitar de um estágio a outro, de uma identidade a outra. Por isso, não raro, períodos de solidão são prelúdios a iniciações de vários tipos. Grandes mestres como Moisés, Buda, Jesus e Maomé passaram um tempo isolados antes de prosseguir com suas missões. Ouviram o silêncio e, imersos nele, puderam traduzir os chamados da intuição – ou a voz de Deus. A natureza desse recolhimento é a mesma que orienta ritos de passagem nas mais diferentes culturas, nos quais é comum um jovem ou um ancião passarem dias afastados da comunidade enfrentando seus desafios por si mesmos.
Em um retiro doméstico também é assim. As percepções se refinam. Prestar atenção ao que quer que seja é muito mais fácil quando estamos avulsos. O foco se fecha e, sem nada para competir com ele, penetramos mais fundo no nosso íntimo. Assim identificamos as insatisfações que borbulham por ali. E podemos vislumbrar soluções e novas ideias. “A solidão estimula a imaginação, sendo um preâmbulo para alterar a realidade na direção desejada”, ensina o psiquiatra britânico Anthony Storr,
autor de Solidão (Ed. Paulus).
Se o homem fica exilado do contato consigo mesmo, privado de sua solidão, pode sucumbir a uma avalanche de solicitações que não são as suas. Ficar a sós ajuda a desacumular. É um “detox” de si mesmo, um esvaziamento. Que, em seguida, leva à renovação. “Nossos sonhos futuros são construídos nesses momentos de solitude,
quando estamos desconectados das opiniões e influências das pessoas que nos rodeiam”, reforça a filósofa e escritora Patrícia Cândido, cofundadora da instituição Luz da Serra, em Nova Petrópolis, RS. Nesses preciosos instantes resgatamos a intimidade com o nosso verdadeiro eu e enxergamos os próximos passos que precisamos
dar em nossa jornada.
A saúde das relações se vale dessa importante conquista. Afinal, para poder estar razoavelmente em paz consigo mesmo e numa relação razoavelmente harmônica com o outro, temos que nos conhecer minimamente – e isso depende de uma noção muito justa de limite. “Não podemos nos confundir demais com nossos semelhantes, nem projetar sobre eles coisas nossas que ainda estão mal elaboradas”, destaca Maria Homem. Alguém que tem a autoestima baixa tenderá a interpretar até mesmo o mais inofensivo dos comentários como uma confirmação de sua suposta insignificância. Diante da recusa justificada a um favor, por falta de tempo, por exemplo, lá virá a conclusão: “Ninguém se importa comigo”. Trata-se de um eu visivelmente embaralhado com seus pares, sem a menor nitidez a respeito de si mesmo. “É nesse sentido que, para estar com o outro, é preciso poder estar, primeiro, consigo mesmo”, esclarece a psicanalista. “Se você sabe ser uma boa companhia para si, se sabe lidar com suas carências e vicissitudes mais profundas, sua energia interna está mais qualificada e certamente você vai compreender melhor as atitudes dos demais”, complementa Patrícia.
O espírito humano vai muito além quando aprende a extrair o sumo da solidão. É a escola do gênio, segundo o historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), mais
até do que a conversa com outras pessoas, que tanto enriquece o entendimento. Quantos filósofos, cientistas e artistas criaram preciosidades no retiro da alma,
adubo para o raciocínio e refresco para os insights? Sem falar que estar sozinho fortalece um senso muito particular e genuíno de liberdade e autonomia.
Todos podem aprender a ficar sós Se o parto nos assusta pela sensação de abandono iminente, como descreveu a psicanalista Maria Homen, os primeiros anos de infância podem desenvolver o gosto pela solidão. No entendimento do psicanalista britânico Donald Winnicott (1896-1971), isso remonta à mais tenra idade,
quando conseguimos ficar apaziguados na presença materna sem a necessidade de interagir com ela e sem ficar ansiosos com a possibilidade de ela se afastar. Essa vivência positiva é que torna o estar só aprazível na vida adulta. Sabemos por experiência própria que permaneceremos bem, mesmo sem ter ninguém por perto.
A boa notícia é que, mesmo que a nossa infância não tenha sido exatamente assim, tranquila e protetora, todos nós podemos aprender a gostar da nossa própria companhia.
Para perder o receio dos momentos de reclusão, a primeira medida, segundo a escritora Sara Maitland, autora de Como Ficar Sozinho – Coleção The School of Life (ed. Objetiva) e moradora solitária de uma casa incrustada num vale ermo da Escócia, é expor-se à solidão em pequenas doses. “Passe algum tempo sozinho em um
lugar onde haja outras pessoas – desconhecidas –, viaje de trem, tome um banho de banheira mais demorado, desligue o celular”, ela sugere. Pode ser que você se surpreenda com a alegria desse encontro consigo mesmo e passe a desejá-lo cada vez mais.
A coach Vivian Goldmann, de São Paulo, descobriu esse grande prazer na marra. Após o término do seu casamento de 13 anos, ela se viu sozinha e desamparada. Aos poucos, foi superando a dependência emocional e reencontrando a própria força. “Com a ajuda da meditação diária, reencontrei meu centro e perdi o medo de
encarar minha vulnerabilidade. Hoje me sinto inteira e segura sendo quem sou, com minhas luzes e sombras”, ela afirma. Além de constatar que era capaz de cuidar amorosamente da casa e de si mesma, Vivian passou a prezar como nunca os momentos em sua própria companhia: a leitura na rede, os filmes, os mantras. Todos se
tornaram oásis cotidianos à prova de interrupções e altamente nutritivos.
Fazer coisas agradáveis sozinho é justamente outra dica valiosa de Sara. Pegar um cinema, caminhar no parque, pescar, fechar a porta da sala e bordar por horas a fio. “Associar a solidão a alguma atividade que você já aprecia tem a vantagem de aliviar a ansiedade em relação ao estar só”, informa a escritora. Além disso, como frisa Storr, os passatempos e os interesses que cultivamos solitariamente, seja cuidar do jardim, ler, escrever, pintar, dançar, cantar, são os pilares de uma vida pródiga e satisfatória. “Eles representam aspectos do ser humano que mais claramente definem a individualidade e permitem que o indivíduo realize seu potencial mais
elevado”, defende o psiquiatra.
Pode parecer solução para todos os problemas, mas a proximidade com a natureza é outro meio eficaz de perceber a riqueza de estar sozinho. Segundo Sara, essa “entidade” reclusa e tímida pede que a aproximação seja feita com calma, atenção e delicadeza. O que é mais fácil de acontecer quando estamos desacompanhados. Mas, uma vez feito isso, é fascinante a miríade de descobertas. Na visão de Philip Koch, professor de filosofia americano e autor de Solitude: A Philosophical Encounter
(sem tradução para o português), o cair da barreira entre homem e meio ambiente gera a “sensação de fluir para a natureza ao mesmo tempo que ela flui através de nós”. Uma verdadeira comunhão aliada de todos os momentos.
O viajante mineiro Argus Caruso Saturnino teve o privilégio de experimentar essa avassaladora conexão a bordo de um veleiro que cruzou o Oceano Atlântico ao longo de cinco meses. A aventura refez a rota de Pedro Álvares Cabral na regata dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, em 2001. Apesar de ter navegado
com cinco companheiros, ele garante que essa foi a experiência mais introspectiva de sua vida. “Ao contemplar intensamente o céu e as estrelas e pensar na infinitude do universo, refleti sobre nossa pequenez e fragilidade. Acho que é uma sensação parecida com a do astronauta que vê de longe a Terra flutuando e volta querendo falar
pra todo mundo que a gente precisa cuidar dela”, compara. Depois de uma semana ou duas, lembra ele, o mergulho mais fundo nas próprias reflexões foi inevitável. “O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos? Qual nossa missão neste planeta?”
Aqueles que, como Vivian ou Saturnino, conseguiram se aninhar na solidão acabaram descobrindo que o suposto vazio que ela estampa é, na verdade, um vasto canteiro à espera de ser preenchido com infindáveis belezas. Nessas terras há plenitude em estar só, sentindo-se em casa, num quarto ou na multidão, como acontece
toda vez que somos acolhidos por uma gentil anfitriã.

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