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Deus, na visão da mais tenra idade

A cultura judaico-cristã está tão impregnada em nossa sociedade que mal percebemos outras formas de ver o mundo. Mas em casa e na escola o convívio com a religião pode refi nar a ligação das crianças com o sagrado e ajudar a mudar uma realidade de intolerâncias que ainda afeta o mundo

Deus, na visão da mais tenra idade – Rogério Pallatta e Caio Guimarães
Uma vez perguntaram a Nelson Mandela por que jamais abdicou de sua religiosidade. Ele respondeu: “Como todos os meninos xhosa, adquiri conhecimentos fazendo perguntas para satisfazer minha curiosidade enquanto crescia, aprendi com a experiência, observando os adultos e tentando imitar o que eles faziam”. Assim nasce a espiritualidade em todos nós. Como um aprendizado que começa em casa, um reflexo do comportamento de nossos pais ou tutores. Em seu último livro, Educação Familiar: Presente e Futuro (ed. Integrare), o especialista em psiquiatria, educador e escritor Içami Tiba, morto em agosto de 2015, expõe com todas as letras que cabe à família formar cidadãos com valores que não se medem, como autoestima, gratidão e religiosidade. A devoção nos pequenos seria um processo natural, muito semelhante ao que ocorre com a fala, isto é, uma repetição do meio onde se vive.
Observar dentro de casa o respeito pela diversidade cultural e religiosa é a pedra fundamental para que a criança perceba que existem outras formas de sagrado que não são apenas o da família dela. E para que respeite isso. Tudo leva a crer que desde a mais tenra idade já se pode passar para as crianças noções gerais sobre o bem e o mal. Conseguir que elas entendam que não devem fazer com os outros o que não gostariam que fizessem com elas é um princípio sufi ciente para os primeiros anos de vida. “A partir dos 7 anos, os pequenos começam a compreender as atitudes dos pais. Os modelos passados pelas religiões – um bom homem, uma estrela-guia, uma entidade protetora – são capazes de ensiná-los, de forma concisa, o respeito pelos outros, a necessidade de dividir as coisas e demais valores importantes para a vida em sociedade”, argumenta a psicóloga Cibele Aparecida Pejan, mestre em Ciências da Religião, de São Paulo. Mais importante é a fé madura por parte dos progenitores. Quando quem ensina tem domínio sobre a doutrina que segue sabe passar adiante a imagem de um Ser Supremo que ama sempre e que está o tempo todo trabalhando para nos ajudar. Espiritualidade nesse caso diz respeito a discernir o melhor a ser feito e o que mais expressa o amor como virtude fundamental.
“Por outro lado”, diz Alex Villas Boas, coordenador do curso de Teologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), “quando se passa uma fi gura distorcida de Deus, como um ser que castiga e que tudo está ligado à sua vontade, desde a tragédia até a vitória do time de futebol, pode-se distanciar a criança da espiritualidade. Tende a provocar revolta, por exemplo, diante da perda de um ente querido”. Villas Boas destaca que é importante ajudar a criança a não confundir fé com mágica. “Uma fé em processo de amadurecimento contínuo pergunta para Deus o que podemos fazer para melhorar as coisas. Pode ser bom rezar para ir bem na prova, mas, se não estudar para ela e tirar uma nota baixa, Deus não foi o culpado”, brinca ele.
Alicerce para a vida 
“A espiritualidade não precisa ser uma instituição nos moldes religiosos. Ela está no respeito consigo próprio e com os outros. Quando esse conceito é transmitido, a permanência de valores éticos e morais pode fazer com que o jovem seja menos vulnerável a comportamentos de risco, porque ele será mais estruturado emocionalmente”, completa Sonia Lyra, doutora em ciências da religião.
A seguir, você acompanha quatro famílias que cultivam a espiritualidade de maneira lúdica e espontânea. Vale a pena conferir ainda Five (vimeo. com/124385005). O filmete retrata práticas religiosas de crianças em diferentes partes do mundo e se traduz como um belo apoio à tolerância religiosa.
Pietra, candomblé
Curiosa, Pietra, de 5 anos, acompanha cheia de perguntas a mãe enquanto esta prepara as comidas que serão oferecidas aos orixás. “Ela gosta de saber para que santo estou cozinhando e fica fascinada com as preferências de cada um”, conta Amanda, que desde que a filha nasceu a leva aos rituais comandados pelo marido José Alves Filho, o babalorixá Omorodelomi. Até os 3 anos, Pietra acompanhava tudo no colo da mãe, mas logo quis participar e hoje é presença querida na dança de roda, coreografia na qual os deuses do candomblé são reverenciados ou invocados durante os cultos. “O interesse de Pietra em nossa religião é genuíno, não impomos nada. Tanto é que dois de seus irmãos não compartilham esse gosto, e o mais velho, de 22 anos, só despertou o interesse nos últimos quatro anos”, argumenta o pai, que faz questão de mostrar aos fi lhos que existem outros tipos de crença, tão benéficas quanto a que sua família segue. No ano passado, Pietra pediu à mãe um Bori só dela. Vestida com seus trajes de baiana – outro desejo da menina muito acalentado –, ela mostra seu pequeno altar onde faz as oferendas aos orixás. “Eu sempre coloco água na cortinha (recipiente específico) e arrumo as conchinhas e as pedrinhas. Daí eu rezo para o papai do céu cuidar de mim e da minha família”, explica Pietra. “Do jeito dela, a Pietra repete as cantigas e as rezas no idioma africano iorubá. Nós apenas explicamos que as letras falam sobre os valores do ser humano, que é fazer o bem aos outros, respeitar a família, não ser agressivo com ninguém, nem com os animais. Isso ela entende e acreditamos que é uma maneira poderosa de moldar o seu caráter para a vida toda. Se ela vai seguir no candomblé, não sabemos. Mas temos certeza de que a curiosidade sobre nossa doutrina está lhe dando uma boa base para seguir o seu caminho”, acredita o pai.
Pietro e Matteo, católicos
Camila confessa que não era fácil tirar os filhos Pietro, 9 anos, e Matteo, 7, da cama para assistirem à missa das 9 horas aos domingos. Mas, como os meninos gostavam da cerimônia, a família conseguiu encontrar um meio-termo: descobriram que na Capela São Pedro e São Paulo, perto de onde moram, a missa dominical acontece às 11 horas. “Já dá para dormir um pouco mais e vamos mais despertos para a igreja”, conta Pietro, que fez a primeira comunhão em outubro do ano passado. Frequentar as missas é algo que os irmãos praticam desde que nasceram. Até os 4 anos, enquanto os pais assistiam ao culto, eles participavam da Escolinha de Jesus, atividade lúdica que acontece no salão paroquial, onde as crianças recebem a mensagem do sermão de um jeito divertido. Agora, maiores, eles acompanham os adultos e, assim como os pais, são membros engajados dos movimentos pastorais. Palmeirenses de carteirinha, fãs de videogame e arteiros como toda criança saudável de sua idade, Pietro e Matteo não dormem sem antes rezar com os pais. No quarto, junto à imagem da Sagrada Família, eles oram o Pai-Nosso e a Ave-Maria. “Depois cada um agradece e faz seus pedidos separados. Para Jesus não se confundir, né?”, explica Matteo. Enquanto o caçula leva tudo um pouco na brincadeira, Pietro, o mais velho, tem percepção do quanto a fé é importante para nos fazer pessoas melhores. “Ter Deus no meu coração me ajuda a não brigar com colegas e me deixa tranquilo quando meus parentes viajam”, conclui Pietro, que estuda em um colégio aberto a alunos de todas as crenças. “Preferimos assim. Dessa forma nossos fi lhos aprendem a conviver com a diversidade religiosa”, explica Camila.
Rafael e Beatriz, budistas
Avalokiteshvara. A palavra que para muitos parece complicada é o mantra que o pequeno budista Rafael, 7 anos, recita diariamente em frente ao altarzinho que ele montou em seu quarto. Com pronúncia delicada, ele sabe bem o significado de sua oração, voltada para a compaixão (literalmente: aquele que enxerga os clamores do mundo). Aprendeu com a mãe, Renata, que o levava desde bebê ao templo Kadampa Mahabodhi, em São Paulo, onde era professora de budismo. Depois que Beatriz, 4 anos, nasceu, Renata parou de lecionar, mas as práticas budistas continuaram em casa. “O budismo é uma religião calcada nas atitudes, as quais devem ser exercitadas diariamente onde quer que estejamos, no templo, em casa, no trabalho, na rua. Por exemplo, as crianças aprenderam que não se deve maltratar os animais, que também são seres divinos. Outro dia o Rafael contou com lágrimas nos olhos sobre um amiguinho que matou uma joaninha e eu percebi o quanto nossa fé já está sendo absorvida por ele”, fala o pai, Roberto. Ao lado da irmãzinha, Rafael cuida com carinho do canto de oração: uma gaveta onde ficam expostos a imagem de Buda, o Mala (terço budista), inúmeros cartõezinhos decorados com símbolos auspiciosos pedras vindas do templo e as sete terrinas de água, que correspondem a uma parte da realização da essência da natureza da mente. “São nossas oferendas. A gente também coloca coisas que gostamos, para os Budas ficarem felizes”, explica Rafael enquanto escolhe um lugar entre as pedras para acomodar o gatinho de feltro que ganhou da tia. “Eles têm a noção do sagrado, se portam com respeito não só na hora de orar, mas também ao encherem e esvaziarem os potes de água e limparem tudo”, diz a mãe. E o pai complementa: “Esse ritual é importante, mas de nada adiantaria se não vivêssemos no dia a dia os preceitos do budismo. São nossas ações que mais ensinam nossos filhos”.
Lucas e Laura, kardecistas
Na casa dos empresários Angela e Wilson há muitos anos que as noites de segunda-feira são sagradas. Nesse dia, às 21 horas, eles leem o Evangelho Segundo o Espiritismo. Depois que os filhos Lucas , 7 anos, e Laura, 4, nasceram, o costume continuou e agrupou a família toda. “É o momento em que podemos realizar algo juntos. Nossos horários são diferentes e dificilmente durante a semana conseguimos fazer as refeições ou ir dormir no mesmo horário”, explica a mãe. O ritual é curto para envolver as crianças: “Quando mamãe começa a ler eu acho chato, mas aí ela vai falando umas coisas bonitas e eu me animo. São histórias de anjos que vêm ajudar as pessoas, e fico com vontade de escutar até o final”, diz Lucas. A fi m de estimular os pequenos, cada vez é um que escolhe a leitura, extraída de livros psicografados por Chico Xavier. “São passagens do Evangelho, que sempre nos transmitem mensagens positivas. Meu marido e eu gostamos depois de comentar com o Lucas e com a Laura o que foi dito, e é muito rico ver como ambos assimilam a teoria. Eles ainda são pequenos, mas dá para perceber como já começam a ter discernimento do que é uma boa ação, uma conduta amorosa. Isso é algo que os dois vão levar para sempre”, diz a mãe, uma católica não praticante, que desde 2003 passou a estudar a doutrina kardecista e hoje é voluntária no grupo espírita Casa do Caminho, em São Paulo. “Papai do céu é muito legal comigo e com a minha família. Por isso, eu sempre agradeço a Ele tudo o que eu tenho e peço que ele dê o mesmo para todos os meninos do mundo inteiro”, fala Lucas, um garotinho de muitos amigos, mas que não tem nem ideia da religião praticada por eles. “A gente não conversa sobre isso. Para quê? Isso não faz diferença”, resume em sua descomplicação infantil.

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