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Os 100 dias mais importantes de nossa vida – Getty Images
Quando pensamos que nossas crianças poderão alcançar uma vida centenária, graças aos avanços da ciência, 1 ou 2 anos de idade parecem muito pouco. E são, mas só em termos cronológicos. Não é à toa que a intuição faz com que muitas mães, que têm esse privilégio, planejem se afastar do trabalho por esse mesmo período para ter mais tempo ao lado de seus bebês. Nem é por acaso que algumas famílias, novamente as que podem, esperem seus bebês assoprarem duas velinhas antes de deixá-los aos cuidados de uma creche. A ciência vem confi rmando o que essas famílias, intuitivamente, já sabiam. Que os primeiros dois anos de vida são definitivos para estruturar quem aquela criança será o resto de sua existência. Os cuidados físicos e emocionais desses 24 meses irão gerar bem-estar emocional por toda uma vida. “É como construir a fundação de uma casa. É sobre ela que todo o resto será erguido”, diz Charles Nelson III, PhD em neurociência e diretor de pesquisas no Hospital Infantil de Boston, em uma das entrevistas no documentário 1000 Dias, previsto para ser lançado no Brasil em março de 2016. O filme é uma produção da Maria Farinha Filmes dirigida pela cineasta Estela Renner, que vem se especializando no amplo território do desenvolvimento infantil. Já abordou temas de impacto para a infância em Criança, a Alma do Negócio, sobre o estímulo ao consumo, e Muito Além do Peso, que mostra a perigosa relação dos pequenos com o excesso de comida. Para o novo longametragem, Estela procurou pais e pesquisadores de diversas partes do mundo que atestam o efeito duradouro dos cuidados que dedicamos às nossas crianças (e às mães) desde a gravidez até que elas façam seu segundo aniversário. 
O filme sensibiliza cuidadores e educadores que se dedicam a crianças pequenas. Também dirige uma questão às sociedades e governos que não priorizam a infância: falta apoio para que as mães conciliem maternidade e trabalho e para que os bebês passem mais tempo em casa antes de ir para a creche, o que afeta sua saúde física e emocional. “Quando se está em um estado tão puro, as primeiras marcas são muito profundas”, pontua a especialista Anna Rezende, terapeuta antroposófi ca e reichiana, de São Paulo. 
Olhar e tocar 
Como esse período tão curto pode ser responsável por tanto? Aquele bebê, curioso e apaixonante, também é extremamente vulnerável. Mesmo que ele não tenha consciência do que recebe e do que faz falta, vai guardar de alguma forma as experiências boas e ruins do que recebeu em seus primeiros anos de vida de um jeito quase indelével. Uma história que já começa na gestação. 
“Durante os primeiros anos de vida se desenvolve o chamado sentimento básico, algo que vai permear a maneira de o adulto ver o mundo pela vida afora”, diz Antonio Carlos de Souza Aranha, médico e terapeuta familiar, de São Paulo. Esse sentimento, que pode ser medo, confi ança, ansiedade, alegria, está relacionado com situações como a maneira que a mãe e a família receberam a gravidez, o jeito como transcorreu o parto, o modo como aquele serzinho foi recebido e tratado logo que chegou a seu novo lar. Tudo isso tem infl uência sobre o desenvolvimento. “A capacidade de alguém se dar bem na vida, de ser feliz, está muito ligada à relação com a mãe nesses primeiros anos”, defende o pediatra José Martins, de Campinas, um dos defensores do aleitamento materno e da extensão da licença-maternidade no país. 
Fazer o bebê se sentir amado é essencial. E isso se dá, em boa parte do tempo, por meio do toque e do olhar, algo que qualquer mãe já sabe, e que agora os cientistas reconhecem. Não existe estímulo maior para o desenvolvimento neurocognitivo de um bebê, do que o olhar de sua mãe ou o embalar afetuoso do pai. Quando a mãe retribui aquele olhar de entrega que o bebê lança a ela, está mais do que simplesmente fazendo um carinho. Está nutrindo a formação dele como indivíduo. “Se a luz ambiente não estiver muito forte, os bebês abrem bem seus olhinhos buscando contato visual com quem cuida deles. É uma experiência extremamente recompensadora e que ajuda a estreitar os laços com seus pais”, diz Joshua Sparrow, professor da Universidade de Harvard e renomado psiquiatra infantil americano, coautor, com TB BRazelton, de uma série de livros sobre desenvolvimento infantil, como Alimentando seu Filho, Sono e Tirando as Fraldas (Artmed). 
A mesma recompensa da troca de olhares acontece quando a mãe toca seu fi lho ou quando os pais dão a ele aconchego e segurança por meio de colo. “Quando o olhar de um bebê encontra o da mãe, ele recebe um alimento para a formação do seu eu. Quando ela o segura no colo, está transmitindo que há nesse mundo um porto seguro para ele confi ar”, diz Anna Rezende. 
O melhor é que não precisamos fazer esforço algum para dar tudo isso a nossas crianças. Pais e mães gostam tanto de olhar suas crias que é comum entrarem no quarto para fazer isso mesmo quando elas estão dormindo. A ciência só reforça o que já sabíamos desde o primeiro chorinho. A cada troca de olhares, o cérebro da criança produz endorfi na e inunda o corpo com uma sensação de prazer, alegria, excitação. Só lembre de deixar o celular de lado, pois, para que a mágica aconteça, a troca precisa mesmo existir. Sem distrações eletrônicas. 
Preparação é amor 
Os tais mil dias incluem as 40 semanas dentro da barriga da mãe. “Na gestação, o bebê já ouve a voz dela e identifica sons: converse com seu filho e mostre o quanto ele será bem-vindo”, diz a irmã Veroni Terezinha de Medeiros, pedagoga que faz parte da sede nacional da Pastoral da Criança, de Curitiba, PR. A entidade, ligada à Igreja Católica, tem um trabalho voltado aos mil dias em comunidades de base e atende cerca de 2 milhões de crianças atualmente. 
Uma das primeiras orientações é que a mãe segure o filho nos braços assim que ele sair da barriga. “Abrace seu bebê e dê de mamar na hora do nascimento, as primeiras gotas de leite são muito importantes”, aconselha Veroni. Estudos já mostraram que o esperado contato com a pele da mãe traz conforto e ajuda a regular a temperatura corporal e a respiração dos recém-nascidos. Do mesmo jeito que a gente se tranquiliza quando recebe um abraço em um momento de tensão. Como o parto é a transição inagural da vida, um nascimento tranquilo, feito com cuidado e respeito, é capaz de estabelecer um padrão seguro para as outras transições que virão. Como se a gente estivesse ensinando que aquele bebê pode fi car tranquilo quando as outras mudanças da vida chegarem. E esse contato ao nascer não é bom só para o pequenino. Para a mãe, segurá-lo estimula os hormônios associados à produção de leite. No pai, estimula o impulso de proteção e de sustento. O fi lho, desse jeito, se ocupa de fazer nascer, junto com ele, uma mãe e um pai. Um dos homens entrevistados no documentário de Estela narra a aventura mais ou menos assim: “Até os 35 anos eu vivi sem fi lhos. Depois disso, tive que mudar absolutamente tudo em minha vida”. Desde arrumar o berço, discutir o nome, lavar as roupas que irão para a maternidade até imaginar brincadeiras para o bebê que está por vir, tudo isso já faz parte da educação familiar, que envolve pais e fi lhos. Não é por acaso que as mães ficam desligadas e sonhadoras à medida que a barriga cresce, um estado que os americanos chamam de baby brain (algo como cérebro de bebê, para defi nir lapsos de memórias ou falhas cognitivas que as mães dizem que aparecem). Real ou imaginário é como se as mães estivessem se afastando dos problemas do dia a dia só para cultivar a espera de seus pequenos. Em um mundo ideal, elas não deveriam fazer isso sozinhas. “Um bebê precisa de uma comunidade para recebê-lo e para dar apoio à mãe que irá cuidar dele”, completa Souza Aranha. 
Mas… como? 
Alguém já disse que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Mas muitas mães, em boa parte do tempo, estão sozinhas nessa cruzada. Enquanto ela amamenta ou se dedica 24 horas ao recém-nascido, o pai do bebê deveria zelar pelo seu bem-estar. A empresa em que ela está teria que incentivar sua saída, e não apressar sua volta. E o governo, apoiá-la com a oferta de empregos de meio período, por exemplo, ou uma licença que permita a ela amamentar por mais tempo. “O ideal seria que a mulher pudesse fi car um ano ao lado da criança. Se forem dois, melhor ainda”, defende José Martins, que participou da luta política para que a licença-maternidade no Brasil subisse dos parcos três para os atuais quatro meses, em 1986 (algumas empresas já dão seis meses de licença). H oje, ele sonha com o exemplo da Noruega. Lá, a licença-maternidade de dois anos pode ser passada para o pai, caso a mãe queira voltar ao trabalho antes do fi nal. Governos que fazem isso assumem que uma criança bem cuidada será um adulto mais seguro. Adultos melhores fazem sociedades melhores também. “O amor materno investido na criança é uma parte importante da economia”, concorda o economista James Heckman, que ganhou o prêmio Nobel em 2000, em entrevista na produção da Maria Farinha Filmes. 
Enquanto essa ideia não serve de guia para a sociedade em que vivemos, nos resta encontrar caminhos para garantir o bem-estar de nossos pequenos. Nessa hora, recorrer à “aldeia” possível é de grande ajuda. Avós, por exemplo, podem dar apoio para que a mãe vá mais tranquila para o trabalho – sem falar no pai, que precisa revezar de fato funções. Uma babá afetuosa também soma. “A melhor babá é aquela que se apaixona pela criança. Priorize o vínculo que seu fi lho estabelece com ela. Trocá-la o tempo todo é um equívoco”, lamenta José Martins. Ela não substitui a presença da mãe e do pai, mas pode ser uma bênção no intervalo de tempo em que eles não estão. “Uma criança precisa de ao menos um adulto que olhe por ela em tempo integral e que responda calorosamente às suas necessidades de atenção e amor”, destaca Sparrow. 
Mudar para mais perto da empresa e almoçar com os fi lhos, negociar horários de trabalho mais adequados a uma mãe ou mesmo fazer home office em alguns dias podem ser caminhos para se ter mais tempo com seu fi lho. Muitos chefes já se deram conta de que não querem perder as profi ssionais para sempre depois que elas dão à luz, e por isso têm fl exibilizado as jornadas de trabalho. E, se a mãe ou o pai quiserem – e puderem –, tirar um sabático para exercer seu papel durante algum tempo, saibam que não é fi m de carreira. “Uma mulher, ao ter um fi lho, se abre, sua sensibilidade aguça. Pode levar uma vida criativa, inovadora e motivadora”, afi rma a executiva Denise Damiani, mãe de dois, que fez carreira em grandes empresas e hoje dá consultoria fi nanceira e de empreendedorismo para mulheres. Segundo ela, esse tempo longe do escritório pode ser um oásis de criatividade. Além de passar muito rápido. “O que são um ou dois anos diante de 40 de trabalho?” O importante é planejar a saída e ir tranquila, pois a volta é possível. 

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