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Em nome do Avô, do Neto e da brincadeira – iStock

“Brincar é a mais divida de todas as atividades. Assim, sugiro substituir a grave fórmula litúrgica “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, por outra, mais leve: “Em nome do Avô, do Neto e da Brincadeira”, escreveu o grande Rubem Alves (1933-2014). Na crônica abaixo, o escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista nascido no interior de Minas Gerais, falou sobre uma das relações mais especiais que existe. Lembramos da mensagem, publicada em Bons Fluidos quando Rubem Alves era nosso colunista, e rememoramos aqui no dia do avô. Boa leitura!

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Em nome do avô, do neto e da brincadeira… 

Cansaço. Até Deus se cansa. Lembrei-me
de um poema de Fernando Pessoa: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo,
há tanto tempo… Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as
coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser…” Deus deve sentir o cansaço
das estrelas…

Segundo as Sagradas Escrituras o
Universo começou com o cansaço. Deus se cansou das coisas do jeito como tinham
sido desde toda a eternidade. Se não estivesse cansado delas – tédio – não
teria inventado o mundo.

Os teólogos tentaram curar Deus do seu
cansaço. Inventaram palavras pomposas para animá-lo. Disseram que ele, Deus,
era o máximo. Anselmo, um dos teólogos mais importantes da tradição cristã,
disse que “Deus era aquilo maior do que pensar não se pode”. Assim, se saber é
bom, segue-se logicamente que saber muito é melhor. E saber infinitamente é
divino. Deus, assim, tem de saber tudo: é onisciente.

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Ter poder é coisa boa. O poder para
fazer coisas dá alegria. Deus, alegria suprema por definição, tem logicamente
de ter poder infinito, para estar eternamente alegre. Assim, ele tem de ser
onipotente.

E há o prazer da presença: estou feliz
por estar no meu escritório, cercado de objetos de que gosto, escrevendo. Mas,
pelo fato de estar aqui, não estou nem nas montanhas nem nas praias. Minha
presença aqui é a minha ausência de todos os outros lugares. Com Deus é
diferente. Sua presença enche todos os espaços. Ele é onipresente.

Perfeições? Não as quereria para mim.
Ficaria louco instantaneamente. Borges escreveu um conto sobre um homem de
memória perfeita: Fulnes, o Memorioso. A memória do Fulnes era tão perfeita que
nela ficavam guardadas todas as folhas de uma árvore. Mas as folhas balançam
com o vento. A memória de Fulnes registrava cada alteração. Na memória de Fulnes
não havia uma árvore. Havia infinitas árvores: a das 14:30 e um segundo, a das
14:30 e dois segundos, a das 14:30 e três segundos – e assim sucessivamente,
cada uma delas com um nome diferente. Tomem o Fulnes e o elevem ao infinito:
assim seria uma mente onisciente – ela conheceria todos os bateres de asas de
todas as abelhas, de todos os beija-flores, de todas as moscas, de todos os
insetos e todas as aves. Conheceria todos os espermatozóides nas ejaculações de
todos os bichos; todos os movimentos de fezes e urinas; todas as sementes de
capim; todos os cheiros e fedores: todos os pensamentos havidos e por haver;
todas as letras, em todos os livros do mundo; todas as notas em todas as
partituras musicais. Pobre Deus! Não poderia descansar nem dormir. Seus olhos
sem pálpebras jamais se fechariam. Não poderiam se fechar. Não poderia gozar
uma canção. Para se escutar uma canção é preciso que todas as outras canções
sejam silenciadas. Mas a onisciência lhe proíbe isso.

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O mesmo pode ser dito de todas as
outras perfeições divinas. Eu odiaria estar presente em todos os lugares ao
mesmo tempo. Estar presente em todos os lugares é não estar presente em lugar
algum. E eu odiaria ser onipotente. A onipotência me tiraria o prazer de
brincar. Brincar só tem graça se houver a possibilidade do erro. Tocar piano,
jogar sinuca, cozinhar, escalar montanha, rodar pião, escrever um texto: tudo
ficaria sem graça porque tudo daria sempre certo, magicamente. E não há nada
mais chato que isso.

Alberto Caeiro contou, num poema, que o
Menino Jesus se cansou do céu e fugiu para a Terra, escorregando num raio de
Sol. “No céu tudo é estúpido, tudo é falso, em desacordo com flores e árvores e
pedras. No céu ele tinha de estar sempre sério.” Preferiu ser um menino comum,
que faz as coisas que os meninos comuns fazem. Mas, para que ninguém soubesse
que ele havia fugido e se pusesse a sua procura, ele fez um milagre: montou uma
farsa: fez com que parecesse que ele ainda estava no céu. Fugiu, deixando lá o
Deus Pai e o Espírito Santo.

Alberto Caeiro é mestre em taoísmo. Mas
não sabe muito as coisas da teologia. A verdade é outra. Não foi só o Menino
Jesus que fugiu do céu. Foi a Santíssima Trindade. Fugiram os três e deixaram a
farsa montada, para enganar. Fizeram isso por medo dos teólogos e dos
religiosos. Ficaram com medo de que eles começassem tudo de novo.

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O Natal anuncia que Deus realmente
ficou cansado, cansado de ser Deus. Invejou os prazeres que os homens podiam
ter e ele não: dormir, tomar banho de cachoeira, chupar mexerica, brincar, fazer
amor, ter de se esforçar para conseguir. O Natal é o anúncio de que Deus se
livrou de todas as suas perfeições para ficar criança.

Agora os três andam pela terra
disfarçados de Avô, Neto e Brincadeira. Tem de ser o avô porque o avô brinca
melhor do que pai. E por que Brincadeira, em vez de Espírito Santo? Porque o
Espírito Santo, segundo a tradição teológica, é o que acontece entre o Pai e o
Filho: eles brincam… Brincar é a mais divina de todas as atividades! Assim,
em harmonia com o espírito do Natal, sugiro que a grave fórmula litúrgica “Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” seja substituída por outra, mais
leve: “Em nome do Avô,  do Neto e da
Brincadeira”…

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