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És divina e graciosa

Observe a altivez de uma árvore. Repouse sob o amparo de sua copa. Resgatar o espírito de sabedoria e serenidade desse ser vivo é uma forma que encontramos de homenagear o 5 de junho, data em que se celebra o dia mundial do meio ambiente

És divina e graciosa – Shutterstock
Tive o privilégio de crescer em uma chácara cujo pomar foi formado, árvore a árvore, por meu avô Tião. Eram mangueiras, abacateiros, laranjeiras, mexeriqueiras, ameixeiras, goiabeiras e uma tímida romãzeira. O terreno contava ainda com lindos flamboyants. Árvores para todos os gostos e netos – meu avô gostava de presentear cada um de nós com uma delas. Algumas sustentavam balanços que, num impulso, chegavam ao céu. Outras, seguravam crianças. Passamos a infância subindo nessas árvores, pulando de galho em galho, sem nunca, me dou conta agora, nenhum dos oito primos quebrar um dedo sequer. A minha árvore era uma mangueira que expandiu sua copa e fazia sombra a uma pedra chapada de uns 3 metros de diâmetro. Paraíso. As raízes daquele tempo são muito fortes, mas, infelizmente, a minha mangueira não existe mais. Deu lugar à casa que meu pai construiu quando a família aumentou. Lembro da tristeza de saber que a árvore senhora seria derrubada e de não poder fazer nada para mudar seu destino. Lembro do luto imanifesto quando, um dia, ao voltar da escola, a vi no chão, partida em pedaços.
Embora uma casa calorosa tenha sido erguida no lugar, no íntimo, nunca achei a troca justa. Que arquiteto foi aquele incapaz de oferecer uma alternativa para a manutenção da árvore? Meu avô, embora não tenha dito palavra, também deve ter chorado por dentro quando soube que o progresso da família teria tal preço. Meus amorosos pais, bem sei, estavam fazendo o melhor que podiam. Pena que não sabiam o que sabem hoje.
Não preciso fazer esforço para recordar a mangueira frondosa e sentir quão refrescante era passar as tardes ali. E quão protegida eu me sentia. Nos dias felizes e nos dias tristes. Crianças que fazem amizade com uma árvore dificilmente serão capazes de fazer mal a ela ou a qualquer outra, imagino. Há muito tempo atrás era sagrado,
até para os adultos, reverenciar esse ser da floresta. Ele era parte da vida, das crenças, das construções, da cura, assim como referência espacial, que marcava os limites e indicava o caminho. “É logo ali, depois da seringueira!” “Passando o cipreste, dobre à direita…” “Siga até encontrar o ipê.”
Imponentes, resistentes, sólidas, as árvores sempre despertaram respeito, talvez por saírem das profundezas da terra e, no contínuo crescer em direção ao alto, evocarem a conexão com o céu. São mais sábias do que Buda, ouvi certa vez. O indiano radicado na Inglaterra Satish Kumar recorda que, na estrada para o sítio da família, sua
mãe apontou para uma gueira e disse: “Vê aquela árvore? Ela é a maior professora que existe. Mais do que Buda. Buda conseguiu a iluminação embaixo de uma. Não somos muito iluminados hoje em dia porque não sentamos mais debaixo delas”, filosofou.
A literatura e o cinema também já prestaram sua homenagem a esse incomparável símbolo da natureza. Quem não se lembra do nobre personagem Treebeard – parte árvore, parte gente – do segundo episódio de O Senhor dos Anéis: gura lenta, solene, penetrante, cuidadosa. Em outro filme, O Regresso, que rendeu o Oscar de melhor ator a Leonardo diCaprio este ano, as árvores parecem desempenhar um papel de alicerce e transcendência pela capacidade de suportarem as maiores ameaças.
O poder de inspirar
A mitologia é outra que se abastece desse encantamento. Entre os escandinavos, por exemplo, o freixo simboliza a vida universal. Porque, ao mesmo tempo que está na vida terrena, dos homens, desce até o nível subterrâneo, dos mortos, e sobe para o nível dos deuses, como Thor e Odin. Lendas pré-colombianas, africanas e orientais, por sua vez, falam de mulheres que se esfregavam nas árvores para aumentar a fertilidade. Enquanto os druidas – espécie de sacerdotes dos povos celtas, que habitaram a Europa antes de Cristo –, consideravam o carvalho a árvore mais sagrada. Onde hoje fica a catedral gótica de Chartres, na atual França, havia um bosque delas.
No candomblé, a gameleira branca, comum de ser encontrada nos terreiros, representa o orixá Iroko (tempo) e é vista como guardiã e protetora.
Sabedoria e equilíbrio
Para Raul Cânovas, paisagista, escritor e um venerador das árvores, “as raízes são como nossa alma: existem, mas você não vê. Estão ligadas ao âmago, ao passado, aos nossos ancentrais. É por isso que se ‘diz minhas raízes’. Já o tronco é a parte palpável da árvore, equivalente ao corpo, o tempo presente, o concreto. E a copa é o nosso anseio de atingir o divino, aquilo que se alça para cima, o futuro – a parte mais espiritual”, compara. Cânovas defende que abraçar árvores pode, sim, ter qualquer coisa de terapêutico. “Pois as árvores acumulam uma espécie de sabedoria evolutiva, já que, na história do mundo, saíram do estado básico de fungos, musgos e liquens
e ganharam corpo, altura, profundidade. Passaram por todo tipo de abalo como frio, calor, sede.”
Elas transformam gás carbônico em oxigênio, fornecem alimento, abrigo, cura e proteção. Ensinam sobre o tempo, a estabilidade, a paciência. Mostram como manter uma postura de equilíbrio até nas adversidades.
O designer de móveis Tunico Lages entende isso como poucos. Nasceu em Queixada, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, uma das regiões mais pobres do Brasil, mas que, talvez por isso, tenha lhe feito valorizar tanto o essencial. Mais especificamente, o contato com a natureza. Estudou antropologia, administração, mas se
formou mesmo foi na cultura de móveis. Tamboril, tarumã, jacarandá do cerrado, pau-ferro, jatobá. Toda árvore derrubada por um raio ou que caiu depois de entrar em combustão, como acontece naturalmente no cerrado, vira matéria-prima nas mãos dele. “Até o angico, que não serve para fazer cerca, curral ou coxo porque apodrece
no tempo, na movelaria é útil. É uma madeira que torce, não trinca, não racha. E é linda”, elogia.
Em Brasília, onde mora atualmente, o artesão sente que devolve a vida à madeira quando faz peças como a cadeira Ninho (de curvas tão suaves, as pessoas riem ao sentar nela, acolhidas que são pelas angulação correta para a coluna). Tunico aprendeu mesmo a dar valor às coisas relevantes. Homens e árvores. Em amizade eterna.
*Com conteúdo da revista Vida Simples

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