Publicidade

Memórias esculpidas

O escritório do arquiteto Guto Requena explora maneiras de criar objetos cotidianos a partir de emoções humanas, em um estudo que mistura design, tecnologia e sentimentos

Memórias esculpidas – Divulgação

“Existem hoje milhões de interfaces digitais capazes de reconhecer estímulos do nosso corpo e essa realidade tem inspirado o trabalho do meu estúdio de uns anos pra cá. Temos experimentando a nova tecnologia das mais diversas formas. Gosto de imaginar, por exemplo, que podemos esculpir algo intangível, como as memórias”, conta o arquiteto paulista Guto Requena, que mantém um escritório homônimo na cidade de São Paulo e soma no portfólio dezenas de projetos executados em diferentes partes do mundo.

Publicidade

Uma de suas mais recentes empreitadas, nomeada Love Project (projeto amor, em tradução livre), apropriou-se de histórias afetuosas para dar vida a objetos como vasos, fruteiras e luminárias, moldados a partir de impressão 3D. Isso mesmo, narrativas ganham forma e ficam perpetuadas em peças cheias de significado. “Quando estamos nervosos, ansiosos ou amando, nosso corpo produz dados físicos. E se a gente coletasse essas informações para construir o design?” Tal indagação de Guto foi o pontapé inicial para o estudo que capitaneou. Depois, ele e sua equipe encontraram maneiras de aprimorá-la e colocá-la em prática.

O conceito do projeto se baseou na ideia de convidar pessoas a relembrar grandes histórias de amor (que aconteceu com elas ou alguém próximo), com a intenção de decodificá -las em uma linguagem de desenhos 3D. Para viabilizar o objetivo, a equipe pesquisou diferentes tipos de sensores até estipular o uso de três: um voltado à captação dos batimentos cardíacos, outro à atividade cerebral (comportamento de ondas gama e beta) e um terceiro focado nas variações da voz. Eles são plugados ao corpo do participante, enquanto ele narra em voz alta suas memórias, e captam cada uma das alterações físicas emitidas. Os dados são lidos por um soft ware especialmente desenvolvido pelo Estúdio Guto Requena em colaboração com a empresa de tecnologia D3 e, a partir do programa Grasshopper (muito usado por arquitetos e designers para criar geometrias tridimensionais), ganham o contorno de um objeto.
Por fim, os desenhos são “materializados” com o uso de impressoras 3D, que podem imprimir em poliamida, vidro, ABS, cerâmica ou vidro. “Construímos uma interface digital que analisa os sinais coletados pelos sensores e cria as peças”, afirma Guto, já acostumado a associar a era digital às narrativas poéticas no seu trabalho. A primeira abordagem trata de conversar com o participante para que ele escolha o tipo de objeto – um vaso, uma fruteira ou uma luminária – que gostaria de criar a partir da narrativa. Assim, o convidado está definindo um campo de gravidade por onde as partículas ativadas pela contação da história vão orbitar – evitando que se desorganizem no espaço.
“Chamamos a equação de princípio das partículas”, diz o arquiteto. Cada um dos sensores acoplados ao participante direciona um comportamento delas: a frequência da voz altera a velocidade em que andam (se a pessoa fala mais alto, a partícula caminha mais rápido), os batimentos cardíacos modifi cam a espessura e o sensor da atividade cerebral atua na atração e repulsão, dando maior liga ou espaçamento. “Uma das curiosidades é que o batimento cardíaco fi ca marcado nas linhas que compõem a peça. Ao tocá-la é como se você pudesse, literalmente, tocar o ritmo do coração”, explica Guto. “Para o objeto ter um tamanho fi nal controlado (um vaso, por exemplo, precisava ter uma altura máxima para caber na máquina de impressão), defi nimos que sua altura equivale a cinco minutos de história. A partir desse tempo, as partículas começam a crescer de novo pela base, criando uma nova camada e engrossando a peça”, complementa.
Um dos convidados para a primeira etapa da experiência, o artista plástico Felipe Morozini declarou o amor que sente por seu sobrinho ainda criança. “A gente conversa de um jeito que eu nunca conversei com ninguém. Dez anos atrás, quando ele nasceu, foi o dia mais emocionante da minha vida. Tudo o que eu crio desde então sinto que é para ele. Ele acha que sou uma criança grande. É muito emocionante entender esse amor incondicional, a forma mais pura de amar alguém”, comoveu-se o artista. Enquanto Felipe dava seu depoimento, a história dava à luz uma luminária composta por tiras de resinas fluidas, sem grandes alterações na sua forma. Um desenho calmo e sereno. A jovem Lais Delbianco, por sua vez, falou sobre a relação dos avós, relembrando o conteúdo de uma carta que o avô deixou para a esposa muitos anos atrás. Enquanto Lais relembrava a vida dos seus entes queridos, houve momentos de silêncio e introspecção, levando à desaceleração das partículas. Após uma pausa, a narradora chegou a uma conclusão comovente, responsável por intensificar o curso do traçado do seu vaso.
O segundo experimento do Love Project aconteceu na Galeria Baró, na capital paulista, durante um final de semana, somando 53 participantes interessados em rememorar passagens marcantes da sua trajetória. Durante os dois dias do evento, o público trouxe lembranças e assistiu em tempo real elas tomarem corpo – de mandalas exclusivas. Os objetos com contornos pessoais puderam ser levados para casa pelos narradores. “Criei um sistema, e não um produto. A partir dele, outros resultados podem vir. Nenhuma peça foi comercializada ainda, porque a prioridade foi o desenvolvimento conceitual”, revela Guto. De acordo com ele, a tecnologia ainda é bastante cara e, para viabilizar a produção, é preciso encontrar parcerias.
 O moço criativo, que ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 1999, visualiza uma revolução no mundo do design. Assim como outras áreas, esse campo também está sob forte influência da era digital, e a evolução da impressão 3D vem dando sua contribuição para potencializar as mudanças. Nessa geração, o senso de participação e colaboração dos usuários será cada vez mais exigido.
“Esse projeto fala de uma coisa muito atual: a sustentabilidade, que não se resume ao cuidado com o uso de materiais. Quando conseguimos criar projetos plenos de carga emocional, trazendo o cliente para o processo, estabelecemos um vínculo inseparável entre usuário e objeto. É a sustentabilidade afetiva. Com certeza o ciclo de vida da peça tenderá a ser muito mais longo”, aposta. “Para mim, faz muito mais sentido chamar o usuário para participar da criação. Nessa hora, automaticamente você cria afeição.” Por isso, Guto considera que a iniciativa não tem uma só autoria. Os arquitetos do seu escritório dividem a assinatura dos objetos com os participantes que revisitaram emocionantemente suas memórias. Como bem define a curadora Adélia Borges, “o design que se destaca é aquele em que o autor coloca algo da sua história pessoal, o design que traz o coração de quem fez”.
Convidada para a primeira etapa do Love Project, a dona de casa Iraci Nascimento falou sobre amor de mãe. Com a voz embargada e os olhos cheios d’água, disse que faz tudo o que pode para ajudar a fi lha. O objeto que escolheu dar corpo para perpetuar essa emoção foi uma fruteira ( veja no destaque ). Sensores ligados a dona Iraci converteram alguns sinais vitais emitidos durante a contação da história em uma linguagem 3D que foi, em seguida, para uma poderosa “impressora” de objetos
Ao lembrar da forte relação entre seus avós, Lais Delbianco ficou comovida e interrompeu a narrativa para segurar o choro. Depois voltou a falar do casal com muita emoção. Esse intervalo na narrativa ficou para sempre no vaso projetado. Note na peça acima como a trama fica interrompida. Reprodução em tempo real de um sentimento