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O zelador das frutas raras

Helton Josué coleciona frutas de que você nunca ouviu falar e, provavelmente, vai passar a vida sem degustar. Mero detalhe. Esse homem do interior paulista está cuidando da biodiversidade, e o mundo já deve muito a ele por isso

Helton coleciona mais de 1400 espécies de frutas raras – Rogério Pallatta
Uma foto antiga dá conta de uma paixão que o acompanha pela vida. Mostra o menino de 2 anos observando uma folha. Numa idade em que crianças costumam ser desajeitadas para mexer com plantas, Helton demonstrava rara delicadeza para acariciar, sentir e cheirar espécies vegetais. Quem conta é sua mãe; e basta caminhar alguns passos ao lado do jovem para “enxergar” a cena sem desconfiar da corujice materna.
Helton Josué Teodoro Muniz nasceu em Piracicaba, viveu ali até os 2 anos, quando os pais se mudaram para Itapetininga e, depois, já em idade escolar, foi para Angatuba, onde estudou até a oitava série. Diz que fugiu da escola por não aguentar tanta teoria. Ansiava por mexer nas coisas, aprender ciências, praticar o que era ensinado. Infelizmente, deu de cara com conceitos abstratos que não se encaixavam com o que queria viver fora da sala de aula. Somado a isso havia a incompreensão diante de seu jeito de se locomover. Por causa de uma disfunção neuromotora de nascença, não conseguia escrever no mesmo ritmo dos colegas de classe, e a falta de paciência dos professores foi minando sua vontade de estar naquele ambiente. Para a tristeza do menino, a professora de história sugeriu aos seus pais que procurassem uma escola adaptada. Mal sabia ela – que tanto o criticava pela lentidão no ditado – que a carreira de Helton já ia sendo traçada nas ciências da natureza. Longe dos bancos escolares, o menino se metia em mental aguçada para assuntos da terra, sem se importar se o ritmo de mãos e pernas não acompanhavam a velocidade das descobertas. Assim aprendia sozinho a botânica, o latim, a matemática e a história, sempre aplicados aos seus interesses.
Em Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo, à beira do rio Paranapanema, chegou aos 16 anos para viver, com os pais, no sítio herdado dos avós e formado por pasto e pomar de abacate, mexerica, caqui e laranja. Nenhuma dessas frutas, contudo, batizou o viveiro que nasceria mais tarde sob o nome de Saputá, em homenagem à primeira fruta rara que o instigou.
Conta Helton que certo dia, aos 17 anos, estava visitando amigos num vilarejo próximo e ouviu a conversa de pescadores sobre um cipó encontrado antigamente na beira dos rios e que dava uma frutinha amarela e muito doce. Ficou encafifado com aquilo e não viu a hora de chegar em casa para procurar a palavra no dicionário da
avó. Seria sua primeira pesquisa bibliográfica entre as muitas que se fizeram necessárias depois. Desconfiou que poderia ser só mais uma conversa ada de pescador.
Que nada! Lá estava a descrição: “Frutífera silvestre da família Hippocrateaceae” – hoje Celastraceae. Ficou inconformado. Se existia no papel, por que não se encontrava mais na natureza? Assim que pôde, calçou as botas e saiu a procurar a tal planta. Naquela primeira incursão não achou nada, mas não tardou a encontrar um galho para levar embora. Plantou sem observar a ambiência e a espécie não vingou. Anos depois conseguiu reproduzir outra variedade, já sabendo da necessidade de se tentar imitar as condições de solo, umidade e incidência de sol do ambiente onde foi encontrada a fruta.
Daí não parou mais. Era leitor de uma revista agrícola e cava de olho nos anúncios de troca. Começou mandando sementes de tudo o que havia de diferente na região e, em contrapartida, conseguiu muitas mudas e sementes de outras partes do Brasil e do mundo. Colecionadores de frutas raras também o ajudaram a formar o seu acervo. Aos poucos, o pasto foi dando lugar às plantas. Não perdia mais uma só semente, e o que não cabia no antigo pasto ia para o viveiro, que nasceu, assim, do excedente. E
que representa, hoje, parte do seu ganha-pão. Sua busca continuou na natureza – nos bosques, nos brejos ou em qualquer m de mundo que abrigasse alguma espécie rara de que tivesse notícia. Nada de abacate, mexerica ou caqui. Eram só araçás, gabirobas, bananas de semente, jequiris, juás, tarumãs, jaracatiá e tantas outras nativas.
Desde 2004 passou a anotar tudo numa caderneta. O nome popular, o científico em latim, quando foi plantado, de onde veio e outras informações. Esse pequeno compêndio já seria digno de uma nota dez num curso universitário, mas o que diriam os professores que o afastaram do ensino fundamental se folheassem o livro Colecionando Frutas (ed. Arte e Ciência) que escreveu com apoio da Lei Rouanet?
Bem, isso é assunto para se deixar para lá, pois Helton não é de guardar rancor (ele só fica triste, a gente é que fica revoltado). O negócio dele é estar com as mãos na terra, os olhos no campo e os pés sempre a caminho de uma nova descoberta. É isso que faz seus olhos brilharem. Se bem que, quando fala da mulher, Emilene, e de como a conheceu, o rosto todo se ilumina. Encontraram-se em um congresso da religião a que ambos pertencem. Emilene era cabeleireira, mas também gostava de plantas, daí uma amiga ter feito as apresentações. Depois, o próximo contato de Helton foi por carta manuscrita. Um foi e um pedido de casamento, direto como costuma ser. Namoraram, casaram e Emilene foi, feliz, morar no sítio. São parceiros de descobertas, de pesquisas e de aproveitamento do que colhem. Nem tudo Helton pode comer, pois é diabético; mas tem as ideias de preparo e faz a encomenda a Emilene. “Acho que essa fruta fica boa numa geleia”, “experimente essa semente tostada no pão”, “congele a polpa desse coquinho, que depois serve para suco”. Pedidos como esses estimulam Emilene a não só aceitar a dica mas investigar e desenvolver ela própria outro tanto de pratos.
Na última vez em que estive no sítio, chovia muito e encontrei o casal dentro de casa com a calopsita de estimação – basta Helton se aproximar e o pássaro canta imitando a siriema. Normalmente estão trabalhando no viveiro ou cuidando do pomar ao ar livre, mas quando os dois estão dentro de casa tampouco descansam.
Aproveitam para responder e-mails, fazer pesquisas na internet ou em livros, preparar frutas colhidas, além de separar e catalogar sementes. Entre geladeira, mesa e fogão há uma enorme despolpadeira, como aquelas para extração de polpa de açaí, e uma estante de ferro toda tomada por potinhos de plástico com sementes, conservadas como moedas de valor, afinal, representam um grande investimento humano para o futuro; já que conservam encapsuladas informações para uma nova vida.
Enquanto conversávamos, Emilene serviu pão integral feito no capricho usando farinha de trigo e sementes de zilo, uma enorme fruta africana que rendeu mais de 1 quilo de sementes saborosas e nutritivas como amêndoas. Sobre a mesa havia ainda outras delícias como uma conserva salgada de azeitona-doceilão, ácida e suculenta. E suco de jerivá, palmeira farta na cidade de São Paulo cujos coquinhos doces e pegajosos são aproveitados quase que exclusivamente por maritacas.
O fato de Helton conservar no pomar do seu sítio (o Frutas Raras) inúmeras espécies exóticas, de várias partes do mundo, não significa que elas sejam suas preferidas.
Ele é um colecionador e tem ali poucos exemplares de cada fruta que consegue se adaptar ao clima e ao solo. Seu maior acervo mesmo é de frutas brasileiras, representantes dos nossos vários biomas, e isso lho enche de orgulho, pois toca esse projeto em família, sem ajuda financeira externa, apenas pelo prazer de preservar – sua renda vem do viveiro das mudas (vendidas para colecionadores, paisagistas, ou pessoas comuns que compram para plantar na calçada de sua casa, por exemplo) e do
livro (R$ 170, cada exemplar).
Helton tem extremo cuidado para evitar a introdução de espécies invasoras que comprometam a biodiversidade da região (das 1400 espécies de frutas catalogadas, apenas 300 são exóticas). Se bem que, tirando o seu sítio, que funciona como uma agrofloresta orgânica, equilíbrio não é uma característica da qual o entorno possa se gabar – as terras vizinhas são tomadas por pasto, eucalipto e monocultura de arroz. Há um projeto da prefeitura de Campina do Monte Alegre para plantar nas ruas da cidade mudas de frutíferas nativas saídas de seu viveiro. Por enquanto não saiu do papel.
Enquanto isso, Helton continua se entusiasmando com seus achados. O mais recente é da família Myrtaceae, a mesma da guabiroba, da grumixama, do cambuçá, do cambuí, da uvaia e do jambolão, só para citar algumas da sua extensa coleção. Ele conta que havia anos procurava a fruta nativa da Mata Atlântica de nome científico Eugenia gracillima, que só via nos livros. Encontrou nalmente quando já não a procurava mais e brincou dizendo que quando você é colecionador nunca acha a fruta que procura, que só será encontrada quando estiver buscando outra espécie. O fato é que encontrou a tal fruta rara que nem nome popular tinha. Agora já tem. Sem apadrinhamentos mas com autoridade, a batizou por conta própria de guajuraia, uma mistura de guabiroba com uvaia, de polpa ácida e cor amarela, explicando a etimologia. Diz que guaia, taia e aia significam ácido; roba é amargo; ju é alaranjado e uaia é fruta. Então, se você ouvir por aí notícias sobre a tal da guajuraia, saiba que esse nome foi dado por nosso amigo. Certamente Helton incluirá a fruta em seu próximo livro, pronto e em andamento para aprovação na Lei Rouanet. Só falta
o patrocinador. Quem quer ser o felizardo por associar seu nome ou de sua empresa ao de uma pessoa tão importante para a preservação de nossas frutas?
Conheça algumas das espécies encontradas no Sítio Frutas Raras:
• ZILO
(Treculia africana)
Tem origem africana e demorou muito para frutificar no sítio do Helton, mas valeu a pena. O fruto, que normalmente tem cerca de 10 quilos, chegou a pesar
25 quilos. A parte comestível são as sementes que podem ser torradas e transformadas em farinha.
• CUTITE
(Pouteria macrophylla)
De origem amazônica, é rara mesmo no ambiente natural. É encontrada hoje nos estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Mato Grosso. O fruto tem polpa densa, doce e amarela como gema. Rica em amido, a polpa pode ser usada para engrossar mingaus, fazer bolo, pudim ou para comer ao natural.
• SABOROSA OU IAMACARU
(Brasilopuntia brasiliensis)
Nativo da Restinga ou Mata Atlântica, em regiões pedregosas, o fruto pode ser vermelho e mais ovalado ou amarelo e redondo, conforme a variedade. Em comum, ambos têm espinhos. A polpa é suculenta e doce como uma pitaya. O nome “saborosa” já diz tudo.

• JARACATIÁ
(Jaracatia spinosa)
Originária das matas de altitude da Mata Atlântica, o fruto é parente do mamão e contém bastante papaína, uma enzima que pode ser inativada assando o fruto como fazem os índios. Para comer ao natural é preciso colher o fruto bem maduro e deixar repousando durante uma semana. Faz deliciosos doces em compota, sorvetes,
sucos etc. Do tronco se faz também doce como cocada, mas não é sustentável, porque as árvores deixam de dar frutos ou morrem.
• MELÃO DE ÁRVORE
(Solanum muricatum)
Também conhecido como melão-pera, é nativo das regiões temperadas dos Andes, com fácil adaptação a vários climas. Tem polpa suculenta e refrescante com sabor que lembra melão, daí o porquê de seu nome.

• JERIVÁ
(Syagrus romanzoffiffiffi ana)
Em tupi-guarani, jerivá significa “fruta gomosa de cacho”. É comum no Sudeste e Sul do Brasil e muito usado na arborização urbana de São Paulo, e os coquinhos são comidos especialmente por aves. São doces, alaranjados e grudentos. É o tipo de fruta que criança gosta de chupar. A polpa pode ser congelada e usada em suco – que deve ser coado, por causa das fibras.
*Neide Rigo é consultora de gastronomia, colunista do caderno Paladar, do jornal O Estado de São Paulo e autora do blog Come-se. | Contato: Sítio Frutas Raras, tel. (15) 981 325 140; [email protected] | colecionandofrutas.org.

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