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Para a rua com afeto

Cada vez mais pessoas têm reocupado os espaços públicos de modo criativo e democrático, em uma contagiante revolução que traz as cidades de volta. Para o bom uso comum

Para a rua com afeto – Shutterstock
Alguma coisa está acontecendo no coração das metrópoles. Aqui e acolá a tríade “pressa-estresse-isolamento” dá espaço a um lugar bom para se viver. Pipocam esforços coletivos que buscam repaginar os centros urbanos. São convites abertos para que a população reocupe a rua de forma criativa e democrática. Afinal, ela é de todo mundo. É ponto de encontro e não mera via de passagem. É esteira para esticar as pernas, trocar calor, colorir sonhos.
“Em comum, esses movimentos partem da sociedade civil. De pessoas ligadas a determinada paragem ou que enxergam o potencial de uma área e se organizam para ressignificá-la”, aponta a jornalista, pesquisadora e ativista Natália Garcia, cocriadora do Cidades para Pessoas, projeto que faz expedições por localidades do Brasil e do mundo interpretando e experimentando ideias para cidades mais humanas. Segundo ela, a internet, janela para ideias inspiradoras, facilitou muito esse processo. A informação circula com maior rapidez e assim as pessoas sentem que é possível encontrar soluções para os problemas das metrópoles. “Elas estão se responsabilizando e transformando sonhos em realidade e, mais que isso, estão recuperando a relação afetiva com as ruas, praças e rios”, diz Natália.
O anseio maior talvez seja andar por aí com mais leveza e alegria. “As pessoas estavam isoladas e com medo dentro de casa. A convivência no espaço público rompe essas barreiras, une pessoas de grupos diversos e amplia o debate sobre a urbe”, avalia Guilherme Ortenblad, sócio-fundador do escritório Zoom Urbanismo, Arquitetura e Design, responsável pela criação, a partir de 2013, de 30 dos 53 parklets (trocadilho com o ato de estacionar – “parking”, em inglês – e parques “parks”) existentes na capital paulista. A ideia dessas minipraças instaladas em vagas de carros, com bancos e mesas para refeições, foi importada de São Francisco, nos Estados Unidos, uma das cidades mais amigáveis do mundo. Patrocinados por empresas ou por lojistas da área onde serão implantados, esses pequenos oásis urbanos – alguns com gangorras e mesas de pebolim, inclusive – desafi am a onipresença dos carros nas vias e provam que vale muito a pena reavivar o convívio a céu aberto. Em um dia, duas vagas de estacionamento recebem 40 carros. No caso do parklet, essa mesma metragem acaba recebendo 300 pessoas, de acordo com a pesquisa Parklet 2013, realizada pelo Instituto Mobilidade Verde. Chamarizes de encontros, essas estruturas provocam o aumento do fl uxo de pedestres, da segurança e do comércio locais. “Vizinhos que não se conheciam passam a desfrutar do espaço juntos. Trabalhadores levam suas refeições. Grupos se reúnem para fazer reuniões ou estudar nas mesas, algumas guarnecidas de energia elétrica e wi-fi  gratuitos”, relata Ortenblad, feliz de ver que a estratégia já vingou em várias cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Vitória, Recife e Fortaleza, entre outras. O que não faltam são projetos para tornar as ruas mais amistosas e acolhedoras:
 
Conexão olho no olho
Desde que os smartphones se tornaram soberanos, quem olha para o lado? Quase ninguém. Preocupados com essa triste tendência, o coletivo Th e Liberators International, criado por um grupo de australianos, lançou o seguinte desafi o: “Onde foi parar a conexão humana nas grandes cidades? Compartilhe um minuto de contato olho no olho e descubra a resposta”. Estampada em cartazes, a proposta instigou transeuntes em diversas cidades do mundo no dia 15 de outubro de 2015. O movimento global promove atos públicos como esse na esperança de que possamos acordar nossa natureza amável e inclusiva. Em São Paulo, a ação, que recebeu o nome de EntreOlhares, ocupou a Praça Roosevelt, no centro. Por cerca de quatro horas, 500 desconhecidos ficaram cara a cara em silêncio durante um minuto, deixando-se levar pela empatia e pelo desejo de proximidade. Para o artista visual Pedro Céu, de São José dos Campos, no interior paulista, que integrou a comissão organizadora do evento, a experiência dá margem a questionamentos que passam batido pelo cotidiano acelerado da capital. O que você vê no olhar do outro? Até que ponto o outro é uma ameaça? O que é que nos une? As reações, segundo ele, foram as mais diversas. Choros, sorrisos, abraços, beijos. Os mais retraídos sentiram certo desconforto, os agitados, dificuldade de concentração. Já os atirados queriam permanecer em conexão por mais tempo. “Vivi uma troca real.” “Pude perceber e ser percebido.” “É como se o outro enxergasse o que há de mais profundo em nós.” Os comentários deixam transparecer a intensidade do elo estabelecido em praça pública. “Para conseguir encarar o outro, é preciso que a gente consiga encarar a nós mesmos. Perceber que não existe o fora. Tudo é uma projeção do que há aqui dentro”, filosofa Céu. “A grande lição é estender a experiência vivida ali. Levar o olhar amoroso para o convívio na metrópole.” eyecontactexperiment.com 
 
Meditação nas ruas
Um grupo de pessoas sentadas em círculo medita em largos, praças e calçadões enquanto a capital paulista pulsa a mil por hora. Parece provocação. Mas a intenção ali depositada não poderia ser mais pertinente. “Quando nos sentamos em zazen nos espaços públicos, nos apropriamos dele, estabelecemos outra relação com a rua, com a cidade, com as pessoas, porque nossos limites se expandem. Nossa casa não se limita mais às quatro paredes”, afirma a monja zen budista Waho Degenszajn, líder do movimento “Indo com as Ruas”, criado no início de 2015. O grupo, composto de 10 a 15 integrantes, se reúne às sextas-feiras, às 18h30, em locais de fácil acesso por metrô, ônibus, bicicleta e a pé. Waho acredita que por ser o encerramento da semana, as pessoas estão mais abertas e disponíveis ao encontro. Buzinas, sirenes, vozes e motores se emaranham, ameaçando a concentração. Mas o exercício é possível. “Na rua, os ruídos externos ficam por mais tempo em nossas mentes, quando nos damos conta dos ruídos internos, já acabou. Na sala, por diminuirmos os ruídos externos, nos deparamos com os nossos ruídos internos mais rapidamente, o que nos incomoda. Por isso, parece que o tempo não passa”, compara. Acontece que, do ponto de vista do budismo, não há separação de espécie alguma: dentro e fora, eu e o outro, cidade e natureza. “Somos a vida da Terra. Porém, o medo nos isolou muito do contato com as ruas e as pessoas”, lembra a religiosa. Para desfazer esse equívoco, o círculo de meditadores se oferece como inspiração aos passantes. “Nós só mudamos a nós mesmos e, quem sabe, nossa mudança possa gerar algo benéfico a nossa volta e assim por diante”, anseia a monja. Uma coisa é certa. Alguém sempre se junta à roda. “Se nos abrirmos ao contato com o outro, ele deixa de ser um desconhecido e passa a ser alguém com nome, com história, sonhos, medos, qualidades e defeitos como todos nós.” facebook.com/therigatha.zazen
 
Horta comunitária
Terrenos baldios são o retrato do descaso. Quantas possibilidades ali enterradas? Pois o bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, pode se orgulhar da horta comunitária desenvolvida, a partir de 2013, em uma área até então abarrotada de entulho. Ponto de consumo de drogas e desova de objetos roubados. Hoje, um oásis que faz brotar amizades, trocas e muito verde. Coordenada pelo biólogo Eduardo Gomes e pela aposentada Sônia Miranda, a iniciativa, autorizada pela prefeitura e apoiada por um pequeno grupo de amigos, é tão fértil quanto as mais de cinquenta espécies cultivadas no local, entre verduras, leguminosas, ervas, temperos, frutas e plantas medicinais. Um banquete à disposição de qualquer pessoa, inclusive do restaurante ao lado, que diariamente se abastece ali. E, em retribuição, vive presenteando a horta com novas mudas. Os canteiros recebem visitas diárias – aproximadamente 400 por mês – , seja de moradores da região ou de outros bairros, seja de turistas que passam ali perto quando vão conhecer o Cristo Redentor. “Sempre aparece algum voluntário se dispondo a regar ou plantar”, revela Gomes, encarregado da rotina mais pesada, ao lado de dona Sônia. Um ensina o outro, ajuda o outro. E assim a área vai se firmando como ponto de lazer em família. Há quem leia o jornal ouvindo o canto dos pássaros, há quem queira apenas espantar o estresse envolto no coquetel de aromas. O reduto ainda mantém-se aberto para semear conhecimento. Ali acontecem palestras de educação ambiental e uso de plantas medicinais, oficinas de compostagem, reciclagem e bioconstrução com bambu. Os organizadores também participam de piqueniques onde trocam sementes e experiências com outros grupos de hortas comunitárias. E orientam os moradores da favela dos Guararapes, localizada no mesmo bairro, a conduzirem o seu próprio cultivo. “Assim, a população tem contato direto com os ciclos de produção do que consomem, aprofundando sua consciência das causas e consequências de seu estilo de vida para o meio ambiente e a sociedade. Sem falar que é um caminho para se repensar e democratizar a cidade”, pontua o biólogo. facebook.com/HortadoCosmeVelho
Arte urbana
O projeto de arte urbana Mapa Gentil vem estimulando os habitantes de quatro cidades do Distrito Federal – Taguatinga, Ceilândia, Samambaia e Riacho Fundo – a cuidarem com mais carinho uns dos outros e também dos lugares onde vivem. Idealizada em 2012 pela artista Janaína André, ligada à Associação Cultural Faísca, a iniciativa evoca a gentileza por meio de grafite e estêncil em muros, revitalização de praças e jardins, distribuição de miniesculturas por áreas de circulação comum e inserção de placas e adesivos com mensagens que instigam a reflexão sobre a relação das pessoas com aqueles locais. Por exemplo, cultive a harmonia, respeite as mulheres, preserve o parque. Cerca de seis mil pessoas já participaram da mobilização. Estudantes, professores, moradores e jovens em situação de risco. Juntos eles definem o local da atuação e debatem o que aquele lugar necessita para ser melhor. Depois, passam por oficinas de capacitação ministradas por experientes artistas. Daí vão a campo. “Gostamos de espalhar poesia por aí”, confessa a artista, apaixonada pelo alcance da arte urbana. “Trata-se de uma expressão muito democrática, que sai do espaço institucional, muitas vezes, elitizado, e desperta o coletivo, dando a noção de pertencimento em relação à cidade”. Enquanto os grupos produzem, não raro ganham lanche de algum vizinho ou um trocado de um pedestre para comprar refrigerante. Demonstrações gratuitas de gentileza. Em retribuição, a comunidade é convidada a percorrer em uma van o roteiro cultural legado pelo projeto em toda a sua extensão. “Muitos desconheciam as áreas periféricas e se surpreendem com esse contato. Ganham um novo olhar”, conta Janaína. E são contagiados. “Quando se vê, já existe um mutirão para curar a cidade. Às vezes, o banco do parquinho só precisa de um parafuso.” E você mesmo pode colocar. mapagentil.com.br

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