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Poesia Estampada: As paredes do seu quarto transformado em um diário vivo

Branca descreve a alegria, o envelhecimento e enfrenta com sensibilidade o Alzheimer do marido

Branca Machado de Sales, 82 anos, descreve a alegria, o envelhecimento e enfrenta com sensibilidade o Alzheimer do marido – MANU MELO FRANCO, NETA DE DONA BRANCA

Branca
Machado de Sales,
82 anos, nasceu em uma família de nome e
sobrenome importantes na sociedade mineira, estudou em colégio de freira e
seguiu todos os protocolos de uma educação em berço de ouro. Mal saída do
colegial, casou-se com um médico e com ele compartilha a vida há 60 anos, ao
lado de sete filhos e catorze netos criados com amor para dar e vender. “Quando
me perguntam como se chamam as bodas de sessenta, costumo dizer que, nos dias
de hoje, deviam se chamar as bodas de Caná, isto é, uma realização para lá de
milagrosa. Não se usa mais isso atualmente!”, conta orgulhosa dessa união.

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Hoje, aos 82 anos evidentes em seus cachos brancos e
corpo franzino, ela cuida do marido, 92, que enfrenta, há longos treze anos, o
mal de Alzheimer. Envolvida com os cuidados contínuos exigidos por seu José Maria, ela encontra respiro nas
palavras que espalha em seu diário vivo, as paredes de um quarto de sua casa em
Lagoa Santa, MG. “A doença progride inexoravelmente, mas Deus escreve certo por
linhas tortas. Me deu a força de uma leoa, como quando mexem com os filhos
dela. É o que ele está se tornando para mim: meu filhote, pelo qual sou capaz
de dar a minha vida. É assim que faço, é assim que se deve fazer”, diz. “Esse
diário é meu respiro. Nele escrevo um pouco de tudo: confissões de amor demais,
histórias ouvidas, piadas não muito publicáveis, letras de Leonardo Cohen (uma
paixão), fatos tristes e alegres, verdades e mentiras, medos e ousadias,
esperanças ocultas, receitas, desenhos, objetos, registros de saudade e tantas
outras coisas. No mais, é fé na vida e vou me divertindo a valer, enchendo meu
tempo e, aos poucos, colorindo com canetinha hidrocor as paredes nuas e brancas
do quarto.”

Branca herdou de alguns bons ascendentes familiares o
gosto pela escrita. Ela é sobrinha do escritor Aníbal Machado e prima de Maria
Clara Machado
, fundadora do Teatro O Tablado. Com a literatura pulsando
forte nas veias, a incansável e criativa senhora de humor inabalável, lançou,
em 2011, seu primeiro livro: Sigilo & Outros Avulsos (edição do autor).
Tudo começou com um caderno velho de anotações onde ela derramava crônicas
enfeitadas com memórias da infância, situações rotineiras, devaneios de uma
senhora com alma repleta de juventude. Os textos foram digitalizados e
hospedados em um blog com a ajuda dos netos, seus fãs de carteirinha. A coisa,
então, correu solta na internet e milhares de pessoas passaram a conhecer Dona
Branca e seus escritos, até que uma editora independente se apaixonou pelos
textos e decidiu reuni-los em um livro que teve suas 500 cópias vendidas no
tempo de um suspiro.

Em sua casa, além do “quarto diário”, ela coleciona
sandálias Havaianas (são mais de 60 pares pendurados na parede externa da
casa), latinhas diversas, vidros em formatos diferentes, penas de passarinho e,
ultimamente, se arrisca como fotógrafa amadora registrando a poesia de sua
rotina. Com essas pequenas “manias” criativas, Branca vai se distraindo e
enfeitando o tempo que teima em ser cruel com os que já passaram dos sessenta.
O espírito livre se mantém forte e guerreiro, mesmo vinculado aos cuidados
ferrenhos exigidos pela doença do marido. “Nasci para ser livre, tenho certeza.
Gosto de poder estar aqui e acolá, lugares fechados me sufocam. Não gosto de
roupas justas, sutiãs, nada que talhe meus movimentos. Quando estou fora de
casa me sinto leve e solta: estou onde devo estar. Deixo o ar circular dentro
do meu coração, nada de movimentos contidos, gosto de ir e vir sem dar
satisfações, não me sujeito a horários e regimes alimentares, nunquinha da
silva! Faço questão de escolher minhas amizades e meus amores, sou uma Rosa
Luxemburgo e uma Mercedes Sosa do século XXI”, afirma sem falsa modéstia.

O bom e velho caderninho de crônicas ainda mora na
cabeceira da cama e Branca segue preenchendo suas páginas com palavras
libertadoras – quem sabe um segundo livro não apareça em breve. Já não se vê
mais espaço vazio nas paredes do quarto, os cabelos brancos continuam crescendo
assim como a certeza de que envelhecer com alegria e leveza é uma escolha
corajosa. “Sou absurdamente feliz: me criei rodeada de benquerenças e retribuo
dando muito amor às outras pessoas. Às vezes me pergunto: que mal eu fiz pra
ser infeliz? Não caio nessa pegadinha. Se sou assim é porque mereço e, se
mereço, não tenho porque me envergonhar. Sim, sou feliz, desavergonhadamente
feliz!”.

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