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Sensações que só o paladar desperta

Refletir sobre nossos hábitos alimentares faz bem, mas aproveitar as emoções que o paladar suscita também é importante. E nada faz isso melhor do que a comida afetiva, que vem com carinho de mãe, aconchego da terra natal, saudade de uma viagem

Sensações que só o paladar desperta – iStock
Marcelo Noah é poeta. Mas tem história na sua vida que dava mesmo era conto, daqueles que os escritores passam dias imaginando. Quando era bem pequeno, sua avó Suzana costumava visitá-lo ao cair da tarde. Chegava sempre para o café, com uma lata de Leite Ninho, cujo pó o neto devorava sem piedade. Diante do sucesso, as latas começaram a aparecer embrulhadas em papel de presente. Marcelo ganhou Leite Ninho em aniversários e até mesmo no Natal. Nessas datas queridas, vinham duas latas. Às vezes, a vó Suzana embalava junto ao Leite Ninho uma camiseta e duas meias e colocava o embrulho debaixo da árvore de Natal. Marcelo ficou adulto e as latas
de leite em pó não cessaram enquanto a vó Suzana viveu – até os 96 anos. Ela chegava dizendo ‘Adivinha o que eu trouxe?’ e tirava o Leite Ninho da bolsa. E Marcelo sempre rezava para ser mesmo o Leite Ninho. “Nem se fosse uma coletânea do Noel Rosa eu ficaria tão feliz”, conta ele.
Um dos prazeres mais completos que existe reside nessa relação entre comida e memória. Todo mundo tem uma receita ou um quitute que, na primeira bocada, é capaz de parar o mundo e transportá-lo para outro tempo e espaço. Fazer com que o passado esteja presente outra vez, trazer recordações de sua própria história. Seja da infância,
da terra natal ou de um destino longínquo visitado numa data quase esquecida. Comida que traz memórias afetivas, que aconchega. Casos como o de Marcelo, que estão aqui para lembrar a gente de saborear nossas emoções – mesmo que elas morem dentro de uma lata. Sabores que entraram pela boca, aromas que invadiram o nariz, apresentações que encheram os olhos. Foram abocanhadas, mastigadas e bem armazenadas. E podem ser degustadas novamente, quantas vezes você provar dessa comida especial.
Coisa de criança
O menu de recordações vai se formando desde muito cedo. “Quando, na primeira mamada, a mãe coloca o bebê no peito sob um olhar terno, já há uma ligação entre comida e afetividade”, diz a psicoterapeuta Christina Freire. “Na infância, nosso universo é muito mais ligado às sensações. O bebê bota tudo na boca, a criança pequena toca tudo. Temos uma aprendizagem ligada aos sentidos.” É uma fase de descobertas, inclusive do paladar. Quando pequenos, nosso universo culinário é mais restrito, direcionado pelos pais. Então os sabores ficam bem marcados. Talvez por isso haja tantas comidas com gosto de infância, como o pastel de banana que nutria Rosa Nepomuceno. Na rua em que a escritora cresceu, em Botucatu, interior de São Paulo, era só alguém espirrar para a vizinhança inteira se mobilizar. Quando menina, ela
teve um problema nos rins e recebia diariamente de uma vizinha um prato de pastel de banana feito com massa sem sal – ela não podia comersal. Até hoje não sabe o que curou os sintomas, se os cuidados médicos ou os pastéis da dona Iolanda. Anos depois, já adulta e morando num prédio antigo no Jardim Botânico, no Rio, Rosa pegou uma pneumonia. Qualificada de “sem-vergonha” pelos médicos, mas forte o suficiente para deixá-la duas semanas de cama. Ela, que não é boba nem nada, logo alertou a vizinhança sobre sua enfermidade. Gracinha, sua amiga, mandou o lho levar um prato de fusilli com molho de tomate e manjericão que perfumou o corredor inteiro. Ione, vizinha de porta, recém-chegada de longa temporada em Nova York, ansiosa por recuperar o calor das relações humanas, fez sopa de abóbora recendendo a gengibre. Da casa da filha, chegaram um tabuleiro de bolo e uma cumbuca do saboroso feijão-preto da Nonô, babá de sua neta. “Essas coisas aquecem o corpo e o coração. Trazem a memória da minha família, muito calorosa, casa grande, cheia de gente, todo mundo se preocupando com todo mundo.” Quando estamos tristes ou adoentados dá mesmo vontade de comer essas delícias que acalentam a alma. Certa vez, num restaurante em Madri, a escritora chilena Isabel Allende pediu quatro
pratos de arroz-doce e um quinto de sobremesa. Comeu todos sem piscar, na esperança de que aquela delícia nostálgica da sua infância ajudasse a suportar a dor de ver sua filha muito doente. “Nem minha alma nem minha filha se aliviaram, mas o arroz- doce ficou associado na minha memória a consolo espiritual”,
diz ela no livro Afrodite – Contos, Receitas e Outros Afrodisíacos (ed. Bertrand Brasil).
 
Destinos
Para lembrar da terra natal, o mexicano Hugo Delgado gosta decomermole verde, um frango com molho de semente de abóbora e temperos mexicanos, com arroz, frijoles refritos e tortillas. “Esse prato é uma referência dos meus 5, 10, 15 anos até hoje. Tenho 47 anos. Para mim, é uma coisa de continuidade. Como quando você coloca um jeans velho, confortável, ou quando dorme no seu travesseiro e cheira o conforto de alguma coisa que você conheça.” O mole verde está no cardápio do Obá, restaurante em São Paulo de que ele cuida há 11 anos com mais dois sócios. Cada um contou uma receita inesquecível que provou numa viagem, e assim compuseram
o menu da casa com iguarias de Tailândia, México, Itália e até do Brasil. Muitas das receitas tupiniquins também vieram na mala de alguma viagem, tal qual um suvenir.
É o caso da moqueca de camarão com banana-da-terra. Hugo provou o prato pela primeira vez na barraca de praia da Jôse, em Boipeba, na Bahia. Feito o pedido, a delícia demorou umas três horas para chegar à mesa. Nesse tempo, Hugo visitou a cozinha e viu que a comida era preparada como em sua casa. “Você pega um pouquinho de sal daqui, quebra umas folhas ali, corta a cebola. Bate papo, deixa a comida no fogo, toma um cafezinho, volta. É um jeito de cozinhar muito
gostoso, e de alguma forma a comida passa isso”, relembra Hugo. Nem é preciso dizer que a moqueca ficou divina. Foi saboreada numa mesa improvisada com arranjos de marias-sem-vergonha arrancadas do quintal e colocadas em cocos secos. No nal, Jôse deu todas as dicas para Hugo reproduzir a gostosura. Quando Hugo come a moqueca no Obá, em São Paulo, vem de volta a reconfortante sensação de pé na areia, sol, mar, de momento feliz. E não só pelo sabor. As memórias gastronômicas estão impregnadas em todos os sentidos. Quem conhece sabe que a moqueca é um prato de molho alaranjado, vibrante, cor de luz, que para ele lembra o sol. O camarão tem cheiro de mar. A banana-da-terra é tropical, sugere uma paisagem paradisíaca salpicada por coqueiros. Como em Boipeba, no Obá a moqueca é servida borbulhante numa cumbuquinha de barro. “A sensação é completamente diferente conforme o visual. Tem um jeito decomersalada em casa que é alface, tomate em cima, azeite e vinagre. Você não tem que criar uma torre piramidal com ângulos retos. A cor e a textura já são lindas.” Assim fica com gosto de comida de casa. Lembra as receitas que dão aconchego porque você conhece de outros carnavais. Ou outros Natais, Páscoas, aniversários.
Celebrações
O cozinheiro Luiz Severino da Silva foi de Pernambuco para São Paulo, mas não passa um aniversário dele sem comerjunto com os amigos e a família um pirão, receita lá do Nordeste. “A gente pega a carne, cozinha com repolho, milho, mandioca, cominho e batata-doce, tira o caldo do cozido, coloca a farinha de mandioca e faz o pirão.”
As ceias de Páscoa e Natal são outras tradicionalíssimas. Pernil ou peru assado, frutas e frios e um toque familiar em cada mesa. Todo ano o mesmo. Se mudar, todo mundo reclama. Na casa do chef Marcelo Favaro, no Natal, tem bolo de frutas secas que a avó dele já fazia. Certa vez, empolgadas com a abertura de uma escola de culinária nas redondezas, a mãe do chef juntou as vizinhas e irmãs e foram todas fazer curso de ceias de Natal. Voltaram cheias de novidades. O resultado foi
uma ceia impecável. Um brinco. Só tinha um problema. Marcelo foi à casa da vizinha da frente, do lado, da rua de trás, tentou a casa da tia. Todas as ceias eram iguais, sem originalidade. Foi o suficiente para que, no ano seguinte, tudo voltasse a ser como antes. Quando o Natal se aproximou, a mãe de Marcelo comprou os ingredientes para a torta de frutas secas. Sucesso garantido.
Comida gostosa
Apesar desse ar de familiaridade que a maioria das receitas afetivas traz, é possível acordar os sentidos e ter emoção com um prato que nunca se tenha provado antes. Não pelo prato em si, mas pelo entorno. Você deve ter percebido isso lá em cima, pelo perfume de improviso que tem a cozinha da barraca da Jôse. Ou pelo carinho que chegava, de quebra, junto com as receitas para curar o mal-estar de Rosa Nepomuceno. No menu de lembranças importam, e muito, os acompanhamentos.
Quando Hugo Delgado foi para a Turquia, sua mãe disse que ele iria adorar a comida daquele país diferente, porque ela teria “sabor de povo”. Hugo alugou um barco. Eram seis pessoas e o capitão, que dirigia e cozinhava. E a comida dele, para Hugo, era familiar. “Eram sabores completamente novos. Mas o que me lembrava minha casa não eram os temperos, e sim a sensação. O capitão fazia comida, ia fumar, cortava o alimento, dirigia. Era o capitão de um barquinho, não era um chef de cozinha.”
Diz ele que a comida era gostosa, não exatamente deliciosa. Normal. Você pode comer um prato de gosto maravilhoso, mas que não faz conexão com nenhuma memória. Delicioso é bom de paladar. Afetivo é bom de lembrar. Quando fizer uma viagem, traga mais que fotos ou relatos. Volte com receitas. Se quiser matar a saudade de alguém querido, se lambuze com um prato que costumava comer nessa primorosa companhia. Cozinhe em banho-maria essa sensação gostosa de aconchego, aqueça em fogo baixo, mexa lentamente. E se delicie com essa comida gostosa, porque ela abraça você, em todos os sentidos.

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