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Os muitos educadores do coração

Herói, mestre, guru, líder, gente como a gente. A figura paterna pode ter diversas feições. Cada uma, a seu modo, oferece orientação e amparo, além daquele empurrão carinhoso que nos lança com coragem nos braços da vida

Os muitos educadores do coração – Joan Vicent Canto Roig/iStock
Venha de onde vier, a gura paterna sempre chega para ficar. Esse referencial, disseminador de valores que moldam o nosso caráter, se perpetua em nós. É o exemplo filmado dia após dia e, feito película rara, muito bem guardado. “Lá longe meu pai campeava no mato sem m da fazenda. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” Como nos ensina o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, a imagem do pai não desbota – mesmo que os anos se imponham sobre as lembranças. Ela nos acompanha vida afora como um amuleto ou mesmo um farol a apontar o caminho reto, digno de ser percorrido.
Bom mesmo é quando o pai se confunde com um camarada insubstituível. Aquele que nos ajuda a dar nossos próprios passos justamente porque nos empurra pelas veredas da vida, não sem antes nos fazer acreditar que nossos potenciais são chaves que abrirão muitas portas. O filme A Família Bélier (comédia dramática, França, 2014, 1h46 min, Paris Filmes) tem um exemplo adorável disso. A adolescente agraciada com uma linda voz, única ouvinte em uma família de surdos, deseja participar de um concurso de canto em Paris. Mas a mãe a quer por perto, ajudando a cuidar da fazenda que garante o sustento de todos. Felizmente, graças à intervenção paterna, que encoraja a lha a partir, a garota fura o bloqueio materno e realiza seu sonho.
O pai da família Bélier mostrou a que veio, numa analogia aos nossos primeiros meses de vida. Nessa passagem crucial da trama, ele fez as vezes do “intruso”, que aparece para cortar o cordão umbilical, como quem diz: “Opa, somos um trio. Também faço parte dessa história”. “Ao nascer, acreditamos que nós e nossa mãe somos uma coisa só. Cabe ao pai promover a diferenciação e interferir nessa relação simbiótica”, explica o psicanalista Gustavo Nunes, de São Paulo.
Esse parceiro de todas as horas nos mostra a grandeza do mundo, e seus limites. Fronteiras que infundem em nós
o senso de responsabilidade e de respeito pelo outro e pelas normas, segundo a psicanálise. Não à toa, a função paterna
está diretamente ligada ao aprendizado de ouvir “não”. Na maioria das vezes, uma interdição que visa à proteção
da cria. “Você não pode ingerir bebida alcoólica e dirigir. Você não pode falar assim com seu professor. Não, você não pode faltar na aula sem motivo.” Na visão do italiano Luigi Zoja, analista junguiano e pesquisador da temática paterna,
essa gura ainda demarca outras noções fundamentais. “Reconhecer a importância de perseguir objetivos, ser
capaz de se organizar, saber sustentar projetos e aceitar que os resultados não são imediatos.”
Isso tudo somado ao riso partilhado, o carinho, a presença estimulados por uma nova dinâmica familiar promovida pela independência feminina e que foi alterando o papel do pai. Não mais o autoritário. “É crescente a compreensão de que a paternidade significa ajudar os lhos a se tornarem adultos felizes e saudáveis, que se sintam à vontade no mundo e preparados para se tornarem pais eles mesmos”, afirma o jornalista americano Paul Raeburn– pai de cinco, autor de O Novo Papel do Pai– A Ciência Desvenda o Impacto da Paternidade no Desenvolvimento dos Filhos (ed. Agir).
É bonito pensar que o simbolismo pode ir além das relações de parentesco. No folhetim global Velho Chico, por exemplo, os personagens se referem ao Rio São Francisco, curso d’água que atravessa cinco estados brasileiros, como sendo um pai para eles. Seus 2800 quilômetros de extensão fornecem água para beber e para o plantio, além de promover a pesca e o transporte, sem contar o que recai sobre a crendice popular. Segundo os locais, Velho Chico gozaria de poderes ocultos ligados à proteção de sua gente. Inspirada nesse recorte, BONS FLUIDOS estendeu
os olhos para as outras formas de exercer a função de orientador. Acompanhe, a seguir, quatro dessas histórias, todas educadoras do coração.
Pai herói
Há um pai que a gente admira pela bravura e dignidade. São exemplos de uma ética que, mais do que os filhos, impactam uma geração. E ajudam a moldar o sentimento do mundo. “O meu é um sobrevivente de guerra. Ele nasceu na Hungria, passou pelo Holocausto, lutou na guerra de independência de Israel e viveu em muitos lugares até chegar ao Brasil em 1960, aos 29 anos, com 50 dólares no bolso”, conta a jornalista e coach Vivian Goldmann, de São Paulo.
Apesar das adversidades, ela diz que seu Istvan Goldmann tinha muita vontade de crescer profissionalmente e formar uma família. Tudo o que ele queria na vida era ter filhos. “Nasci em 1970. Desde cedo, ele me ensinou que a coisa mais importante desse mundo é a educação. E sempre foi muito presente. Almoçava em casa, fazia perguntas, queria
saber da nossa vida. No jantar, a mesma coisa. Nossa casa era muito democrática. Podíamos falar sobre qualquer assunto. Inclusive, discordávamos.” Nessas ocasiões, diz Vivian, seu pai queria ouvir os argumentos dos lhos para compreender os pontos de vista deles. “Um belo treino que me ajudou a aprender a me expressar com clareza”, diz a jornalista. Essa liberdade gerou nela um forte senso de responsabilidade, e também a incentivou a viajar, conhecer diferentes culturas. “Quando comuniquei que faria um mochilão sozinha, ganhei dele um mapa e o conselho: ‘Se planeje’”, festeja. Sem falar que seu Istvan é amorosidade em estado latente. Uma de suas frases típicas para a lha é: “Já disse que te amo hoje?”. “Quando vou visitá-lo, sempre pega na minha mão enquanto conversamos. E sempre liga para saber se estou precisando de algo. Nele encontro até hoje apoio incondicional. Ele me incentiva para que não disperdice as oportunidades da vida. ‘O máximo que pode acontecer é você não gostar’, costuma dizer.”

Chefe “paizão”
O termo pode assustar um pouco, principalmente quem acha que o paizão aqui foi usado no sentido de que o chefe
decide tudo por nós. Ao contrário de qualquer infantilização, no entanto, destacamos aqui a gura do líder de visão – que não só enxerga o que virá mas nos empurra para a frente e nos faz crescer. Privilégio que o advogado paulista Edmundo Medeiros desfrutou.
Ele tinha cerca de 20 anos e estava em seu primeiro emprego quando conheceu Dreyf Campano. Trabalhava como assistente administrativo quando Dreyf, que lidava com muitas questões jurídicas, embora não fosse advogado,
soube que ele estava no segundo ano do curso de direito. “Ele pediu permissão para o gerente da minha área e me arrastou para o jurídico, de onde não saí mais”, conta. A oportunidade se mostrou providencial. E Edmundo
só recebeu incentivo para se aprimorar naquilo que fazia. “A maior prova da personalidade desse chefe foi quando cheguei ao quarto ano de direito e uma professora da faculdade me chamou para estagiar com ela. Imediatamente contei para ele, que me disse: ‘O que você tinha para aprender aqui você já aprendeu. Se eu fosse você, pegaria esse novo trabalho’”, lembra o advogado. Aberto para conversar, explicar, orientar, ensinar, dentro de uma atmosfera segura, Dreyf ensinava, além dos caminhos jurídicos, que, na vida, erramos, e admitir nossas falhas pode ser muito melhor do que acertar sempre. “Essa postura acolhedora foi extremamente útil para a minha vida toda. Ele me corrigia sem fazer com que isso parecesse uma situação vexatória”, diz Edmundo. “Com ele assimilei a conduta ideal diante de qualquer situação, seja social, profissional, pessoal. Até quando eu ligava para órgãos públicos, assim que terminava a conversa ele vinha até minha mesa e dizia qual era o melhor jeito de me colocar. Desde então carrego isso comigo.”
Mentor filosófico
Compreender esse mundo de contrastes não é missão fácil. A filosofia pode não oferecer respostas para tudo. Mas abre algumas janelas para a re exão ao oferecer ferramentas e autonomia para o pensar. Um pai filosófico é aquele que atiça os saberes e nos diploma na arte de viver, com toda a liberdade e sensibilidade para se mover nas incertezas, como resumiu o cantor e compositor carioca Paulinho Moska. O ano era 1994. Moska tinha lançado seu primeiro disco solo no ano anterior, depois do sucesso do grupo Inimigos do Rei (banda pop-rock em que atuou no final dos anos
80). “Numa tarde qualquer desse ano, meu amigo Alexandre Akerman disse que eu tinha que conhecer um homem,
um pensador, um filósofo que falava umas coisas e que eu ia gostar. Em um encontro na casa dele finalmente conheci
meu ‘desorientador’, aquele que viria a ser meu mestre, Claudio Ulpiano. Foi paixão à primeira aula”, diz Moska sobre as “lições” de loso a que não se prendiam em nada à história convencional da loso a. As falas do professor eram recheadas de artes plásticas, literatura, cinema, música, teatro. “Uma vez perguntei o que exatamente a gente estava estudando. Ele me respondeu: a beleza. A história da beleza, a produção da beleza e a construção da beleza”, lembra o cantor. Moska diz que Claudio o desorientou porque todas as orientações que tinha mudaram completamente depois do encontro entre os dois. “O pensamento dele me ajudou a desenvolver o meu próprio olhar. E começar a produzir
uma obra onde consigo me enxergar, sempre buscando uma poesia existencialista que tenta construir um novo
mundo a partir de um novo homem sensível”, destaca. Claudio insistia que a arte era a construção de novos mundos possíveis, que cada ser humano era uma construção artística de si mesmo. Mais do que qualquer escola, curso,
clube ou casa que o compositor frequentou, aqueles dias (e meses) de “aulas” foram determinantes. “Não esqueço o
dia em que Claudio me escreveu uma carta, dizendo que se sentia meu ‘pai por contágio’. Eu o retribuí sendo, a partir
daquele dia, seu ‘ lho por contágio’. Sem ele, nunca teria escrito as letras de música que produzi nos últimos 20 anos,
nunca teria chegado a uma assinatura tão evidente sobre o que penso. Claudio me ensinou tanta coisa que, no fundo, me ensinou a viver, pelo menos a vida que levo hoje.”
Pai espiritual
Aprender a olhar para o nosso mundo interior em busca de força, às vezes exige um mestre de fé . O economista Fabio Toreta, de São Paulo, encontrou o seu quando assistiu a uma palestra de Prem Baba – Pai do Amor, em sânscrito.
“Já meditava havia alguns anos e me interessava por ioga, psicologia e autoconhecimento. Mas algo me tocou de forma especial quando ele disse que uma de nossas grandes distrações era negar a própria negatividade (raiva, medo, ciúmes).
Encará-la era o caminho para fazer escolhas conscientes na vida”, destaca. Desse dia em diante, o profissional fez alguns cursos sobre a loso a de Prem Baba e visitou o ashram liderado por ele na Índia. “Uma das principais
tarefas do guru é nos ajudar a entrar em contato com nossos dons e talentos, em outras palavras, descobrir por que estamos aqui nesse planeta, e colocar esses potenciais a serviço do bem comum”, entendeu Fabio. Os ensinamentos do
mestre o acompanham e orientam, principalmente na ideia de que precisamos alinhar pensamento, palavra e ação. “É aí que reside a felicidade.” Assim como Prem Baba, Claudio Ulpiano, Dreyf Campano, e Istvan Goldmann sintetizam
a função de preparar homens e mulheres para um destino mais nobre.

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