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O inexplicável tem seu lugar no mundo e nele cabe a crença de cada um

O fato de não haver explicação para tudo, não faz do físico um perseguidor de todas as respostas científicas

Mistérios Naturais – ZÉ OTÁVIO

O desejo de saber de onde
viemos e para onde vamos e desvendar nossa função no universo sempre acompanhou
o homem. Houve um tempo em que essas inquietações foram de domínio da religião.
Depois veio a ciência, que apesar de ter excluído Deus da posição criadora de
todas as coisas, não aboliu a existência de uma força maior que rege o que
vemos e o que não vemos.

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Sobre essa relação entre o
mundo da razão e o da fé, conversamos com o físico brasileiro Marcelo Gleiser, mestre em Física
Teórica pelo King’s College London, na Inglaterra,
e pesquisador e professor de Física Natural e Astronomia do Dartmouth College,
em Hanover, nos Estados Unidos, onde vive com a família. Gleiser ganhou duas
vezes o Prêmio Jabuti, uma das principais premiações literárias do Brasil, com
os livros A Dança do Universo e O Fim da Terra e do Céu. E acaba de lançar A
Ilha do Conhecimento (ed. Companhia das Letras), em que aborda essas questões
complexas que não podem ser respondidas por apenas uma área do conhecimento.
“Deus não faz parte do discurso científico. Mas, para mim, espiritualidade não
se liga necessariamente ao mundo dos espíritos ou da alma. Uso a palavra para
ilustrar uma sensação de ligação com algo maior do que nós, com o inexplicável
no mundo, os mistérios que nos cercam e uma atração profunda pela natureza”,
diz. A seguir, o físico fala sobre essas e outras crenças.

A
ciência já comprovou que o invisível contém muita coisa. Os cientistas contam
com a possibilidade de haver Deus no invisível?

O invisível para os cientistas significa simplesmente aquilo que está além dos
nossos sentidos, em particular da visão. Uma bactéria é invisível e
perfeitamente real. O fato de não podermos ver tudo o que existe no cosmo com
nossos instrumentos não significa que uma parte desse invisível deva ser
atribuída a Deus. Essa é uma escolha pessoal, e não científica.

Por
que o bóson de Higgs é conhecido como partícula de Deus?
O
bóson de Higgs é uma partícula de matéria, tão concreta quanto os elétrons que
fazem parte de nossos átomos. O nome “partícula de Deus” é profundamente
infeliz, pois confunde as pessoas. Veio do título de um livro de divulgação que
visa explicar a física por trás dessa partícula de matéria. O atributo “deus”,
ali, tem a ver com sua importância dentro do conhecimento científico atual, mas
deve ser tomado como metafórico. 


e razão são incompatíveis?

Se por fé queremos dizer a crença em uma ideia ou explicação (ainda que
sobrenatural), mesmo que não tenha ainda uma confirmação, diria que fé e razão
são interdependentes.

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A
fé que move o cientista é diferente da que move o fiel?

A fé científica é na possibilidade de uma hipótese estar certa. Temos sempre
que acreditar numa ideia antes de propô-la ao mundo. Agora, é preciso ressaltar
que existem muitos tipos de cientistas – inclusive pessoas de fé religiosa.

Qual
era a visão de Einstein sobre Deus?

Einstein era contra qualquer tipo de religião organizada, em particular o
cristianismo, judaísmo ou islã. Por outro lado, acreditava que a prática da
ciência, em que uma pessoa dedica uma vida ao estudo do mistério, do
desconhecido, com muita humildade ao ver a grandiosidade da natureza, é, na sua
essência, uma prática religiosa. Einstein mantinha uma grande espiritualidade
junto ao mundo natural.

E
qual a sua visão?

Parecida com a de Einstein. Não acredito em entidades sobrenaturais. Sou
agnóstico, mas me vejo muito próximo da natureza. Tenho uma atração espiritual pelo
mundo e só me sinto completo como indivíduo quando posso me aproximar dele,
tanto intelectualmente, com meu trabalho, quanto pessoalmente, através de
minhas corridas nas montanhas e outras atividades. Eu me sinto à vontade com o
mistério, com o fato de que vivemos cercados de perguntas.

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Você
acredita que seres humanos são feitos de algo além da matéria?

Vejo apenas a materialidade como sendo necessária. Para mim, ser material e
extremamente complexo é bem mais fascinante do que apostar numa outra realidade
imaterial à qual não temos acesso. O fato de a matéria ser capaz de se
organizar para refletir sobre si mesma, como acontece conosco, já é
absolutamente incrível.

Você
tem algum dilema existencial?

O grande dilema que me aflige é a nossa mortalidade, a perda que vem com ela.
Mas não tenho uma conclusão para isso. É como é em toda a natureza, onde a vida
leva à morte, a existência à inexistência. Disso, aprendemos a valorizar o que
temos, a vida, o carinho das pessoas queridas. 

Por
que ser ateu também é algo que vai contra princípios científicos?

Porque a ciência não pode provar a inexistência de Deus. O ateu não tem uma
validação empírica de sua ausência. Por definição, a ciência tem seus
princípios constantemente questionados por qualquer cientista,
independentemente da fé pessoal. A ciência só progride porque se abre a
críticas e questionamentos e, quando necessário, tem seus princípios revisados.
É essa versatilidade que lhe dá força, diferentemente da maioria das religiões.
O agnóstico não crê em uma divindade, mas está aberto a diferentes explicações
de várias áreas do conhecimento.

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Se
o inexplicável sempre será explicável pela ciência algum dia, Deus está fadado
ao fim no longo prazo?

Não. Nossa compreensão do mundo cresce mas, ao crescer, apresenta novos
desafios e questões. Não existe um fim nessa busca. Estaremos sempre
descobrindo novos inexplicáveis, novos mistérios.

Muitas
correntes espirituais lançam mão de exercícios que baixam a frequência
cerebral, como a meditação, para aumentar a capacidade além dos cinco sentidos.
Outras recorrem a euforias coletivas para levar multidões a determinados
estágios de consciência. Há fundamento científico nessas práticas espirituais?

Sem dúvida. Tanto a meditação quanto os fenômenos coletivos podem levar a
estados distintos de consciência. Mas acho que isso mostra apenas a riqueza das
nossas mentes e sua incrível capacidade e habilidade de criar novas emoções e
sensações, sem que haja uma relação entre esses estados mentais e uma realidade
extrassensorial.

Por
que é tão difícil determinar a origem do universo?

A questão de origem supõe o início do tempo – e não sabemos como levar nossas
teorias até esse início, ao menos de forma consciente. Temos modelos e
hipóteses, que juntam as teorias da gravidade de Einstein e a física que descreve
os átomos. Elas são bem interessantes mas não conclusivas. Talvez o problema
seja a origem do tempo, algo que não temos a menor ideia do que signifique.

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Por
que você acredita que sejamos raros no cosmo?

Porque planetas como a Terra são raros e porque os vários passos que a vida deu
aqui para evoluir de seres unicelulares até seres complexos são extremamente
difíceis de serem reproduzidos. Não existirão outros humanos no cosmo – disso
podemos estar certos. Outras formas de vida devem existir, mas a maioria bem
simples. Seres inteligentes podem existir, mas serão bem mais raros e muito
distantes daqui. Portanto, somos tão raros e estamos tão sós neste planeta
azul, que devemos, por uma questão de sobrevivência, protegê-lo a qualquer
custo.

Que
lição podemos tirar disso tudo?
A
de que a ânsia de compreender o mundo é que faz a vida valer a pena. Tome como
exemplo uma taça de vinho. A ciência pode explicar perfeitamente por que aquela
taça e aquele vinho existem. Mas compartilhar a experiência de bebê-lo e sentir
o prazer do momento são mais importantes do que saber todas as respostas sobre
a existência dele.