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Confira como, de acordo com Márcio Fabri, a boa espiritualidade é expressa

Para o padre e teólogo a boa espiritualidade é expressa pela quantidade de vezes que conseguimos sair de nós mesmos para nos ligar ao outro

Milagres da partilha – Divulgação

Da calçada, eu e minha mãe chamávamos: ‘Olá, dona
Joana!’. Ficávamos virados de costas até ela abrir a janela de madeira. ‘Podem
vir, já me retirei’. Eu ficava esperando enquanto minha mãe levava o
caldeirãozinho de comida até a janela. Quando ela se juntava a mim de volta,
levantava a voz avisando: ‘Pronto, dona Joana’. Virávamos de costas novamente e
ouvíamos o agradecimento: ‘Deus lhe pague’”. Durante muitos anos de sua
infância, na década de 1950, Márcio
Fabri dos Anjos
acompanhou a mãe até a casa de dona Joana, uma senhora negra, portadora de hanseníase e moradora da
pequena Monte Belo, em Minas Gerais, onde ele nasceu. “Imagine o quanto ela era
discriminada.

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Eu nunca vi o seu rosto”, observa. Sexto filho de uma
família de onze irmãos, padre Márcio, 70, conta ter crescido em meio a muitas
necessidades, mas que desde cedo aprendeu com os pais o significado da palavra
solidariedade. Formado em filosofia e teologia e professor de bioética no
programa de mestrado e doutorado da Universidade São Camilo, em São Paulo, onde
vive atualmente, o religioso entende a disposição para a partilha e o despertar
para o fato de que não vivemos sem o outro como questões definidoras da
espiritualidade de cada um. Nesta entrevista, ele aprofunda esse tema e
relaciona-o com o ecumenismo do papa Francisco, o sentido do Natal e o papel da
religião em nossas vidas.

Como
o senhor entende a espiritualidade?
Antes de tudo, como uma
condição humana. Somos constituídos de matéria (corpo) e espírito. Os gregos
distinguiam os seres vivos em escalas até chegar ao humano e o humano, além de
ser aquele que é vivo, é também pensante – possui intelecto (entendimento) –, e
tem uma dimensão de imaterialidade, o espírito, o sopro animador. Em latim, a
palavra “espírito” significa “respiro, sopro”, ou seja, aquilo que vivifica.
Depois do respiro, nós descobrimos a possibilidade de assoprar também.

Como
assim?
Quando estamos numa pior, precisamos de alguém que
venha nos dar um sopro, um ânimo. Essa é a espiritualidade que circula; a que
fica isolada dentro de nós é como um ovo que choca e apodrece. Se não temos a
perspectiva do outro em nós, nos autodestruímos.

Ou
seja, espiritualidade todos temos, mas nem sempre sabemos conduzi-la de forma
positiva?
Sim. Nós somos livres para fazer escolhas. Mas
precisamos pensar sobre a maneira como conduzimos essa capacidade de sermos
seres materiais e espirituais. É daí que nascem espiritualidades
qualitativamente diferentes. Elas dependem de uma elaboração que vamos fazendo
da nossa própria vida. Primeiro, porque é difícil sairmos de nós mesmos, das
nossas ideias cristalizadas e irmos para o desconhecido. Dentro disso, a fé se
registra como um sentimento de confiança, uma vez que não dominamos o novo. A
vida é feita de confiança. Segundo, porque temos que elaborar uma resposta
diante dos tropeços. Alguém passa a perna em você e vem uma decepção muito
grande. E agora? Você vai se tornar violento como o outro ou não? Esse
discernimento é o que leva às grandes escolhas espirituais.

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Nesse
contexto, qual é o papel das religiões?
A meu ver, elas têm um
papel essencial: nos grupos religiosos, aprendemos com o outro. Com a sua
história de vida, o outro nos oferece muitas janelas e nós também. Há troca.
Quando não participamos de um grupo, acabamos numa solidão espiritual. As
religiões também têm qualidades espirituais, que podem ser positivas ou
negativas. Há expressões muito humanitários e outras mais agressivas. Tem gente
que mata em nome da sua fé. No fundo, a religião acaba sendo o resultado das
nossas convicções sobre o que é o amor, o perdão e a morte, por exemplo. Mas,
diante de um desafio, como uma doença, por exemplo, às vezes as crenças mudam.
É por isso que eu digo que a religião antes de se tornar uma instituição de
grandes grupos, é uma condição humana. Todos temos, então, um nível de
espiritualidade dentro do qual se dão as incessantes escolhas. Eu reparto isso
com os colegas universitários e que se dizem ateus.

O
que eles dizem?
Ateu significa a negação da existência de
Deus. É um discurso sobre Deus, uma crença. Mas esse ponto, para mim, nem é
muito importante. O importante é o que fazemos com essa crença. Pela maneira
como um colega ateu conduz sua vida, eu, como teólogo, consigo ver a figura
linda de Deus. No livro A Conquista Espiritual da América Espanhola (ed.
Vozes), Paulo Suess destaca o discurso de um chefe inca, no século 16, tentando
entender qual era o Deus dos espanhóis. Ele acaba concluindo que era o Deus do
ouro porque, por causa do metal precioso, eles matavam. Suess deixa
claro
que o supremo é quem dá a vida, o sopro inicial, e é quem nos deu a capacidade
de assoprar também, mas os espanhóis, em vez de assoprar, matavam. Portanto,
você pode não acreditar em Deus, mas se me disser quais são as suas grandes
opções de vida, eu consigo ter uma imagem do Deus que você adora.

Qual
é o seu Deus?
Eu confio no Deus que Jesus nos trouxe.
Ele deu um testemunho grande de que é repartindo que a gente encontra a
grandeza maior da vida. Nós temos necessidades básicas e é preciso
reconhecê-las também no outro. Então, as minhas escolhas vêm de um Deus que é
essencialmente amor, mas não é ingênuo. A vida tem contraposições, não se pode
ter ingenuidades diante do mal. No entanto, existe o poder que temos de não só
receber ajudar, mas de oferecer também. Isso é algo muito forte no papa
Francisco, mas não é porque ele é um grande líder espiritual da comunidade na
qual eu convivo. Mahatma Gandhi e Martin Luther King foram assim e eu vejo
outras pessoas que não são da religião católica com a mesma aptidão.

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Como
o senhor avalia a postura ecumênica do papa Francisco?
O
papa coloca a vida na frente do dogma. Ele assume a condição humana como ponto
de partida da trajetória da religião. Ele tem a coragem de olhar para as
demandas da vida como o divórcio e as uniões estáveis homoafetivas. Ele está
voltando às grandes perguntas essenciais da humanidade diante das quais as
teorias religiosas precisam se readequar. Está oferecendo para o interior da
vida cristã católica uma autocrítica. É preciso, sim, discutir de onde vem a
tese da perversidade do homossexualismo e da indissolubilidade do casamento.
Pela minha análise, vem das concepções judaico-cristãs que acreditavam na
reprodução sagrada para a sobrevivência do grupo. Hoje é diferente. Ficou
separada a relação estreita entre sexualidade, vivência da união e reprodução.
Portanto, o papa não pratica o ecumenismo somente na teoria. Antes de tudo, ele
coloca uma postura de vida aberta. Esse é também o espírito do Natal.

Qual
é a mensagem para festejar o nascimento de Jesus Cristo?
Entender
que não nascemos somente para nós mesmos, nascemos também para os outros. Por
isso Jesus vem como filho de Deus e escolhe um caminho de vida partilhada. Há a
necessidade de reinterpretar a traje
tória de Jesus porque tendemos a ser muito episódicos e
entrar na vida dele como se fosse puramente um livro de histórias – como aquela
sobre a multiplicação dos pães, a da transformação da água em vinho, a da
caminhada sobre as águas… Isso é uma leitura simbólica de uma realidade muito
maior. A essência do ensinamento da multiplicação dos pães, por exemplo, não é
que os pães são fisicamente multiplicados, mas que o milagre está em repartir.

Esse
é hoje o maior desafio?
Sim, diante das riquezas que temos de
recursos tecnológicos, o desafio é repartir o pão. É aí que vamos ver qual Deus
adoramos, se é o Deus da dignidade para todos ou se é Aquele que favorece
determinados grupos apenas. É fácil ter um Deus que aquieta a nossa consciência
e nos dá uma vida boa e tranquila, mas que não nos incentiva a ir além de nós
mesmos. Esse é um Deus conveniente para o nosso egoísmo. Nós não somos ilha, é
preciso superar essa atitude infantil de só receber. Nós também emanamos bons
fluidos e temos responsabilidade pelos bons fluidos que circulam entre nós.

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